Estava sentado no boteco. Na verdade, o verbo tem suas limitações. Não é correto afirmar que ele estava sentado no boteco; de fato, ele está sentado no boteco, sentará no boteco e sempre esteve sentado no boteco. As palavras são poucas para expressar algo que se desenrola no tempo com essa continuidade, com a repetição dos dias que se extendem como azulejos no piso da vida dos sentadores de boteco como aquele. Não há uma única forma verbal que explicite o intervalo entre dois nadas que chamamos de existência, quando nos referimos ao homem que senta no boteco, bebe sua cerveja, fuma seu cigarro, sem segundas ou terças-feiras, alheio ao alheamento, com a cabeça cheia das grandes questões da humanidade e vazia das parcas respostas para os problemas que não temos quando sentamos no boteco sem futuro nem presente nem pretérito.
Apesar da linguagem, ele estava sentado no boteco. Seria mais um sentador de boteco se não houvesse, no meio cheio meio vazio do lugar, uma mulher, também sentada no boteco. Sim, porque se este texto simplesmente falasse dos sentadores de boteco, não seria um conto, seria um ensaio, ou algo do gênero, uma dissertação sobre algo que conheço bem e desconheço outro bocado, uma desculpa para tornar relevante e material a minha opinião sobre algo. Não que alguém dê a mínima para opinião de alguém, ou para ensaios, ou dissertações ou crônicas ou mesmo contos. Eles surgem da demanda biológica do ser humano de se distrair da sua própria natureza, esquecer por um instante que é um animal, sujeito à fisiologia dos seres vivos. A uma busca incessante pela homeostase, da concepção à falência múltipla dos órgãos.
Mas apesar da literatura, ele estava numa mesa e ela estava noutra. Sozinhos. Sempre estamos sozinhos, até quando estamos acompanhados de clichês articulados em língua portuguesa, de uso reiterado, burro e simplório. Nada nos sujeita mais à estupidez do ser humano do que os clichês, porque concordamos, como uma espécie de retardo mental comungado pelo inconsciente coletivo, que eles são válidos. Por isso são ridículos. Pela sua validade, pela sua verdade, pela sua insistência em violar nossa pretensão de sermos únicos. Todo espelho quando olhado com os olhos bem abertos transmite à consciência uma imagem ridícula e real. Algo que não queremos ver. Não somos singulares, somos repetitivos, batidos, somos o jornal de ontem, com as notícias de anteontem e a data de hoje. Somos os cachorros que salvam crianças todos os anos. Cópias mal feitas do cara que nasceu na África. Do cara que cruzou da Sibéria ao Alasca. Nossos primos se deram bem melhor, porque quando se balançam em árvores não têm nenhuma pretensão, escapam da frustração existencial pelo atalho evolutivo. O clichê é o traço vestigial que comprova o nosso insucesso biológico.
No entanto, apesar dos clichês, o protagonista deste conto, a quem desconheço completamente, levanta-se embriagado e anda em direção à mesa da mulher que está, também, sentada no boteco. Desconheço a mulher. Não sei suas motivações, suas aspirações, suas manias, suas fobias, suas neuroses. Todo mundo tem esses problemas hoje em dia. Como exercício lacaniano de psicanálise, o leitor poderia construir o personagem de acordo com suas próprias frustrações. Seu próprio medo de sentir sozinho num mundo cada vez mais integrado. Perceba que eu também não conheço Lacan, até quem estuda Lacan não conhece Lacan. Por isso me desobrigo a conhecer os personagem deste conto. De que adianta? De que vale construir esses Aquiles, Ulisses, Heitores, Desdêmonas, Otelos? Seres humanos que só são encontrados mesmo em folhas de papel de livros de bolso. Os personagem deste conto são reais. Não têm nome. Não são ninguém. Não são alguém. Perambulam, sentam em botecos e se levantam por razões desconhecidas. Isso é a realidade.
E apesar do mundo real, ele vai ao encontro dela. Chega e se posta do lado de fora do círculo implícito do espaço vital das pessoas. Naquela região onde os indivíduos não se sentem ameaçados pela outros, mas com certeza já detectam pelo periscópio do espírito alguma potencial interferência exógena. Essa pode ser como a brisa do Oceano Atlântico, quando sentida numa rede à beira de uma praia, ou como o 6 de agosto de 1945 em Hiroshima, no calor do epicentro. E assim como os seres humanos são capazes das maiores atrocidades e das menores amenidades contra outros seres humanos, o protagonista então dispara o rifle de assalto da linguagem, polido e aperfeiçoado num sei-lá-quantos anos de aprendizado social, afetivo, emocional, plural, etílico, sexual e outros adjetivos correlatos, da seguinte maneira:
- Vamos?
A mulher, imbuída deste sentimento vago ao qual nos remete a audição de palavras que não significam nada, mas que sentimos a necessidade de atribuir qualquer significado para que o nosso mundo não seja o plano medieval e sim a esfera achatada nos pólos que aprendemos que é a única forma de aceitar o plano material, olhou para o homem, enquanto tragava a fumaça do cigarro.Ah, os fatos incontestáveis. As formas geométricas. Os bebuns que falam e fazem besteira, como se não as fízéssemos ou não as falássemos sóbrios como Papa. Ressalte-se que eu disse sóbrio, não lúcido. A mulher, depois de fitar o bêbado durante alguns minutos, então disse, com a calma de uma daquelas moças que apresentam previsões meterológicas, com a calma de quem prevê uma manhã de sol, com pancadas de chuva no final da tarde, no Mato Grosso de Sul:
-Não.
O homem então voltou ao seu lugar. A mulher já estava em seu lugar. E o mundo foi o mesmo, real e apreensível a todos os sentidos, um intervalo entre dois nadas, apesar dos botecos, da linguagem, da literatura, dos clichês e das pancadas de chuva.
3 comentários:
No final, até me surpreendi que você informou que não era seu... Realmente vocês têm o mesmo perfil de temática e escrita. Ótima colaboração, e sabe que deu até vontade de ver essas "peças" do cotidiano num boteco, acho que vou visitar um. Boteco, pelo que leio, parece um ambiente bem amistoso para escritores ou escreventes ou meros leitores de literatura.
Gostei.
Acho que o Igor lê Saramago, hehehe
Saramago e sua divina forma de escrever narrando, por exemplo a queda de uma cadeira, mas que não é a simples queda de uma cadeira, é o comportamento humano, as angústias, reflexões e escolhas.
Não é o diálogo "-Vamos?" e o "-Não" que, de fato, importa. Ou melhor, importa até certa medida. Mas sim todo contexto, ambiente e circunstâncias que o propiciaram. Melhor ainda: é o simples ato de olhar ao redor e prestar atenção no que acontece. E são tantas histórias acontecendo por aí...
Gostei bastante.
(:
'punk', eu completo: 'seu fdp, seus escritos sempre são bem vindos' :-)
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