sexta-feira, 22 de abril de 2011

Maricota

Dois tiros. Jaz um corpo. Esta é a história de Maricota. Maria Joana Costa. Moradora do Jurunas. Mulher de brios, sem papas na língua, tranqüila, altiva e forte. Veio do interior ainda criança, junto aos pais e sete irmãos, para ganhar a vida na cidade grande – a grande Belém. Não foi muito tempo para perceberem o grande engano que haviam cometido. Desemprego. Necessidades. Trabalho duro. Poucas perspectivas. Miséria. Marginalização. Humilhação. Preconceito. Vergonha. A cidade não era aquilo que pensavam. O monstro urbano havia lhes engolido. Sua vida fora a eterna digestão.

Não levou muito tempo para que Maricota, apelido que sua mãe Edileuza havia lhe dado, se visse trabalhando vendendo pupunha nos sinais de trânsito próximo a sua casa. Seu pai, Benedito, conhecido como Biditi, caísse na descrença e na bebedeira. Vivia bêbado. Mesmo que fosse homem reto, íntegro e honesto, as humilhações passadas por ser trabalhador braçal, duro de língua, e rude de maneiras, chacoteado por seu sotaque, não agüentou essa situação, e não mais procurou trabalho. O que sabia fazer de melhor era arar a terra, cuidar das sementes, plantar, produzir. Era um homem do campo. Sabia pescar também. Pescava com destreza camarão. E, de igual modo, apanhava açaí em sua peconha. Uma vez na cidade, nada disso era valorizado, ou fazia sentido no ambiente urbano, no qual a simplicidade e a humildade de homem do campo era sistematicamente explorada e desmerecida.  

Edileuza, mulher calada, sôfrega, assistia essa situação e se esforçava em manter a família unida. Submissa ao marido, criou os filhos obedientes e calados. Seguia fielmente os preceitos da educação cristã em que fora formada – acreditar demais, pensar de menos. Era especialmente severa com as filhas. As quatro filhas, Maricota, Lourdes, Neuza e Marilena, eram criadas para serem ótimas esposas e donas-de-casa. Porém, Edileuza tinha particular implicância por Maricota. Sempre gritava e lhe castigava com mais severidade. Nutria ciúme por conta da grande estima que Biditi tinha por sua caçula. Não era só sua mãe que lhe tinha ciúme, Lourdes também – a irmã mais velha.

Certa vez, Lourdes provocou uma intriga na qual Maricota fora acusada de roubo. Ela apanhou virulentamente do seu pai com vassoura de açaí. Maricota não culpou o pai, sabia que estava apenas fazendo seu papel. Contudo, não agüentou a humilhação. Tinha 15 anos. Foi embora de casa. Sem se despedir e nem nada. Deixou apenas um bilhete, escrito de maneira incorreta e com garrancho: “A humilhação não me deixa ficar. Procurarei meu caminho. Fiquem bem. Adeus”.

Sem instrução, negra e bonita, inevitavelmente, a sobrevivência foi garantida no meretrício. Ela ficou famosa no bordel de Ivanilde – completara 20 anos de idade. A casa de diversões era conhecida por suas festas com serestas, bregas, merengues e cumbias, com fartas porções de bolinhos de piracuí e litros de cerpa. Pagava-se a entrada e o consumo era à vontade. Taxistas, vendedores, trabalhadores braçais, comerciantes eram os freqüentadores. As brigas não eram raras. Quase toda semana havia um esfaqueado, um baleado ou um surrado. Quando não, mortos, mas estes sim eram raros. Até aquela noite.

Em verdade, as festas eram genuínas orgias. As pessoas trepavam no salão da festa. Nas paredes, nos cantos, nos banheiros, no chão, nas mesas, e é claro, nos quatros. O auge da putaria era atordoante para quem estivesse sóbrio e visse o festim. A luz vermelha iluminava. Mulheres chupando falo, e sendo chupadas. Transando em pé nos cantos escuros. Sentando em ritmo frenético. Quando não, de quatro, com cabelos puxados e ao cadenciar das tapas e penetrações. O cheiro de cerpa, de fumaça de Derby e sexo era avassalador. São os homens na condição de animais. Comportando-se como animais. Como vários animais em cópula. Em cio coletivo. Barulho de corpos se chocando, gemidos e gritos. A música toca orquestrando as relações. Os instintos originais tornam-se conscientes e livremente praticados. Gozo e prazer pagos e plenamente satisfeitos.

Nesse ambiente entorpecido, um acontecimento marcaria profundamente o seu transcurso natural. Maricota era disputada por seus clientes habituais. Estava no quarto da noite, de quatro – sua posição favorita. Um tiro. A música pára. Todos param e ficam em posição de sentido, procurando ver o que acontece. A porta do prostíbulo havia sido arrombada com um chute, mas apenas o tiro fazia-se ver a presença de Biditi no festim. Após o tiro, ele procurava bêbado e dominado pelo ódio, o seu olhar avermelhado perscrutava, buscava por sua filha. Tudo foi muito rápido, frações de segundo. Maricota ao ver o pai naquele estado, e ao cair em si, e ver o seu estado, e razão de seu pai estar ali, escorreu uma lágrima do seu rosto, antevendo o seu inevitável destino. Segundo tiro. Jaz um corpo. O Jurunas não foi mais o mesmo. Ficou mais triste.

(Felipov)

5 comentários:

Barão da Ralé disse...

Ahhh moleque!! É isso ai!! Vejo que estamos nos influenciando, tanto na forma de escrever como na audácia de postar!! Adorei teu texto!!!! Gostei do que me falaste ainda pouco: "Q tua linearidade é tua marca!!". E teu posicionamento no mundo tbem!! Tens q continuar assim! Sem parar! Quero ir no enterro do Felipe de antes!!
Vejo que na verdade, não somos a origem de nada. Isso além de Bukowski ou Anais Nïn, está no nosso brasileiro Machado. Talvez tu mais do que eu!! Mas enfim, gosto desse caminho que seguimos. E mais, não vejo problema de trocarmos ideias ou ainda de comparações!! Fico feliz!!
Simplesmente adorei teu texto!! A descrição está perfeita. Sem vulgaridade, mas excitante. E sem contar, estás dando voz a uma puta da necessidade!

Enfim, parabéns.

Anônimo disse...

Raras descrições antes vistas no naturalismo de Aluísio Azevedo, lembrou-me até o Cortiço, porém um cortiço bem mais "quente". A linguagem pós-moderna é excelente e a escolha do nome para as personagens ficou hilário, bem Jurunas mesmo. O Caxinauá, amigo meu e da Camila, gostará de ler este texto seu.

Parabéns mais uma vez!

Gabriela Oliveira disse...

Fantástico.
Por isso querias que eu lesse!!
hahaha
Sei que és um exímio escritor, apenas pela tua fala.
Descrições tão perfeitas do ambiente, do sexo, tão perfeito que até sei como é o rosto da Maricota.
Muito bonito Felipe. =]

Anônimo disse...

É isso, bobinho... mantiveste esse estilo neo-porno-broxante de sempre, afinal de contas, "chupar falos", pelo amor de deus... quase eu desisto do sexo do final de semana ¬¬ hahuahuahuauhahuauhaauhahuahuahua...
sacanagem, adorei! gostei de verdade!
Estás escrevendo cada vez melhor. Como diz a Esther: quem diria hein, todo curubento, agora!!! =D

Camila Travassos disse...

Ê Jurunas! XD


Gosto das tuas descrições e da forma como tu constróis as tuas personagens. Acho que já disse isso antes, né? Além do fato de eu gostar dos 'marginalizados' como personagens centrais da narrativa, claro

Espero mais histórias nessa linha, visse Felipov?

(:

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