sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
O espelho da branca de neve
“Párias na ambição de parecer grande.
Monte de tijolos com pretensões a casa”
(Ultimatum – Álvaro de Campos – 1917)
Conhecia-o há pouco tempo – ainda bem. Teve o fim que merecia. Devia ter uns quarenta anos – no entanto, aparentava ser muito mais velho. Usava um terno bem cortado, apesar de ser visivelmente de segunda mão. Sapatos engraxados, para dar um ar de ordem e sobriedade – bem como disfarçar, pois são igualmente de segunda mão. Cabelo e bigode bem aparados, e muito grisalhos – denunciavam o evidente avançar da velhice, embora tenha pouca idade. Branco de cabelos ondulados, sempre impecavelmente penteados. Alto e magro. Postura ereta e voz empostada. Era naturalmente troçador e desdenhador de qualquer ao seu lado. Detalhista e inteligente, ele procurava defeitos em tudo. Suas críticas eram feitas sempre com tom de auto-promoção. Um jeito arrogante e prepotente que conseguia irritar a todos – óbvio, que todos calam. Gracindo era seu nome.
Trabalhávamos na mesma repartição pública: um cartório. O cartório Sodré. Ele era meu supervisor. Chamo-me Gonçalo. Trabalho no setor de autenticação de propriedade – uma vez regularizada, ela tem que ser autenticada, enfim, pilhérias da burocracia. Vivo dessas pilhérias. É simples: eu carimbava e ele assinava. Carimbar e assinar: o simples que atrapalha a vida de todos. Quer dizer, nem todos: apenas os proprietários. Tudo era muito perfeito na vida do Gracindo. Ele tinha uma linda família, com mulher e filhos que lhe amavam, e um emprego razoável, com subordinados.
Contudo, tinha uma vontade incessante de demonstrar poder. Em tudo. Que ele mandava e desmandava. E que tudo dependia dele. Centralizava. Verticalizava. Gostava de manter o controle. Reafirmava as hierarquias. Ele era o melhor, e tudo o que fazia era igualmente melhor. Mantinha seu poder através da lógica dos favores: o velho “toma lá dá cá”. A base do seu poder eram bajuladores e puxa-sacos. Era esquizofrênico. Egocêntrico. Vingativo. Dissimulado. Que não suportava ser contrariado. Nunca estava errado. Sempre, incorrigivelmente, certo. O seu apelido tácito na repartição era “branca de neve” – em razão da bruxa da branca de neve e o seu dito “espelho, espelho meu existe alguém melhor do que eu”. Era apenas um pária que sempre fez questão de humilhar os outros. Assédio Moral. Promessas de retaliação. Exercia seu poder da forma mais espúria e impune. Era a maldade travestida de pessoa honrada e séria.
Entretanto, um dia a justiça chegou, com o seu castigo e punição. Roberval era meu estagiário. Recém-chegado a repartição, ele organizava as fotocópias dos documentos que eu carimbava, e depois encaminhava para serem assinados. Um dia, Gracindo humilhou-o na presença de toda a repartição. Humilhou-o mortalmente – apenas com o prazer de reafirmar hierarquias. No dia seguinte, Roberval, enfurecido, com sangue no olho, deu dois tiros no peito dele, na frente de todo mundo na repartição. E disse, depois dos disparos: “Ele precisava respeitar os outros. Pena que não aprendeu isso em vida”. Caro leitor, sabe aquela venha máxima: até que ele encontre um doido pela frente. Gracindo achou. O tijolo que se arrogava casa, virou pó.
(Felipov)
5 comentários:
Muito Bom!
Ultimamente mortes, tragédias, tem sido frequentes seus textos.
O que se passa? - rsrs...
Gostei muito Felipe. Pareceu-me bastante familiar os personagens e a narrativa...
Abraços.
Eu gosto muito de literatura russa, e nela sempre tem alguma trama que se desenvolve no ambiente de repartição pública - no segunda metade do século XIX, qualquer russo médio queria ser funcionário público. Foi dessas tramas burocráticas que tanto me fascinam que me inspirei para escrever esse curto texto - que até me envergonho em dizer que me inspirei no brilhantismo da literatura russa para escrever esse parco texto. Fico muito feliz que vocês, caros leitores, tenham gostado.
Olha só! Ele está respondendo os comentários.
Bom menino! - rsrs... xD
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