quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Clotilde




Quando levantei, senti um cheiro forte de rosas e suor. Cheiro de rosas dos amores trágicos. Era o seu cheiro, depois de uma noite intensa de amor. Havia, no seu corpo nu, um cheiro natural de rosas – ela estava deitada de lado, em posição fetal, deixando-se ver apenas as suas costas e nádegas desnudas, com as pernas cobertas pelo lençol de linho branco que havia lhe presenteado. Cheiro onírico, denso e purificador – sobrenatural, diria. Ela roubava o cheiro das rosas – contrariando Cartola. Fiquei impressionado. Clotilde sempre fora rude, fechada, e pouco afeita a carinhos, calada, tacirtuna – sobretudo, independente e autônoma. Aprecio pessoas assim. Comunicava-se através do seu olhar dissimulado e oblíquo, e gestos leves e expressivos – mas fazia seu trabalho com destreza, era profissional. Porém, nesta noite, ela me mostrou a sua verdadeira face: a face do amor.

Era seu cliente fiel – no entanto, não gostava que ela me visse assim; era apenas um amigo que a amava deveras. Visitava-a todas as semanas – ou ela me visitava, revezávamos. Há uns seis meses. Tinha vinte e cinco primaveras de vida. Formosa, farta em carnes, cabelos ondulados, tez alva, com mãos e pés delicados, era pequenina e frágil. Naturalmente bela. Não precisava de maquiagem ou quaisquer outros artifícios estéticos para ficar bonita. Sua beleza, simplesmente, irradiava felicidade e ternura.

Contudo, era triste. Havia me contado de sua vida. Nascera em berço de ouro, pais bem-sucedidos, mãe empresária e pai advogado. Sabia falar francês, italiano e alemão – treinava meus rudimentos de francês e alemão com ela. Tocava piano e clarinete – ela tocava piano muito melhor que eu, às vezes se perdia tocando no piano de casa, de modinhas, blues à Bach, Chopin era sua especialidade; adorava quando tocava “la polonaise”, era a sua música. História e literatura, música e cinema eram suas paixões, desde a tenra idade. Mas, ainda na infância, um evento fatídico mudou sua vida: na décima primavera, o irmão do seu pai abusou de sua inocência. Gostou tanto, que se tornou ninfomaníaca. E acompanhante, sua profissão. Atendia em casa, ou residência. Cobrava caro – tinha consciência do refinamento dos seus serviços. Valia cada centavo.

Chamo-me Ubaldo. 85 anos. Viúvo há vinte anos. Não tenho filhos. Professor universitário: filosofia clássica alemã. Comunista não-praticante. Vivo no centro da cidade, em um apartamento gigante, abarrotado de livros, vinis e um piano. Moro só, com o meu gato branco chamado Che. Rotina: dar aula, tocar piano, ler, ouvir música, fumar charuto e sair com alguns amigos dos tempos do partido. Essa vida pacata modificou-se quando falei com um desses amigos que queria uma acompanhante, com uma especificidade: bela e inteligente. Constantino me deu o cartão de Clotilde. Fiquei muito curioso e marquei logo um encontro – na verdade, uma entrevista, queria mesmo ver ser era linda e inteligente.

A minha frieza senil ficou abalada ao vê-la. Uma paixão avassaladora brotou no meu coração seco e árido. Senti-me um infante apaixonado, fiquei nervoso, coração acelerado, mãos suadas – fazia décadas que não sentia isso. E isso tudo ao simples toque dos meus olhos naquele ser mitológico, que não pertencia esse plano mortal e vil. Sóbria, séria e lacônica, me cumprimentou e se apresentou. Fiquei intimidado, com a primeira impressão. Almoçamos juntos. Conversamos a tarde inteira. Tomamos algumas caipirinhas – ela adorava. Fiquei mais impressionado com os conhecimentos dela. Era perfeita. Quando lhe disse que era professor de filosofia, ela se empolgou, e foi falando de suas preferências e críticas. E a conversa transcorreu naturalmente, como se nos conhecêssemos há muito tempo.

Era uma idealista convicta, leitora voraz de Hegel – profissionalmente, sou estudioso de Hegel, politicamente marxista. Ela falou que não conhecia muito do barbudo chato metido a mudar o mundo – ri da sua ironia reacionária. Música clássica, Villa-Lobos, sambas de Adorinan Barbosa, Cartola, Noel, Chico Buarque, Blues e Ska faziam parte do seu repertório no piano. Em literatura: Jorge Amado, García Marquez, Mann, Joyce e Tolstoi. Eu apenas fazia uma pergunta simples e ela respondia com uma graça, leveza, gestual e olhares, de um conteúdo denso e maduro. Tinha até me esquecido do propósito do nosso encontro. Fiz uma última pergunta: “Por qual razão estais nessa vida??”. Ela respondeu, seca e sacanamente: “Gosto muito de trepar”. A única conclusão que tirei foi: ela tinha vindo de Lesbos, e fora discípula de Safo.

Depois da conversa, fomos para meu apartamento. Ela ficou feliz de ver o piano e tocou duas músicas – as quais não lembro agora. Estava tão encantado. Fomos para o quarto e tivemos uma noite épica, que terminou com ela dizendo: “me destes uma canseira seu velho viril” – fiquei extasiado. Daí em diante, toda a semana nos encontrávamos. Um encontro melhor que o outro. Não foram poucas as vezes que pedi para ela morar comigo e deixar essa vida. Que era a minha vida. O amor de uma vida. O meu amor da velhice. Todavia, ela se irritava e dizia que se continuasse, nunca mais iria me ver. Então, calava. Isso foi até ontem, quando ela demonstrou o seu amor. O seu cheiro habitual de rosas estava mais forte. E ela disse-me, ao pé do ouvido, quando os nossos corpos estavam moribundos e suados de tanto prazer: “sou tua Safo”. Nunca tinha sentido aquela alegria na vida, pela primeira vez sentia o que era felicidade. Entretanto, fora efêmero.

Estou vindo agora do seu enterro. Foi brutalmente estrupada e morta com dois tiros no peito, em seu apartamento, quando arrumava seus pertences para mudar para o meu. Ao seu lado, estava o corpo de Gervásio, com um tiro na boca. Ele era um dos meus camaradas do partido. Soube depois que ele era perdidamente apaixonado por ela. E não agüentou saber que ia morar comigo – Constantino havia lhe dito. Quando vi a terra sendo jogada em cima do ataúde, não tinha mais lágrimas, elas já haviam secado, apenas meu coração gritava em desespero. Da sepultura fechada exalava o cheiro de rosas dos amores trágicos – agora que compreendi que era um aviso. Estou em casa e acabei de tocar “la polonaise” em sua homenagem. Minha querida Clotilde voltou para a sua ilha no mar Egeu. Acabei de girar a ampulheta, espero a minha hora.

(Felipov)

5 comentários:

Juliana Brandão disse...

Nossa Felipe!
Esse texto foi de tirar o fôlego! O.o

Parabéns!

Unknown disse...

Que desperdício isso sim, uma moça tão refinada, culta e inteligente, tornar-se "acompanhante"!! Quero um alguém assim pra mim!!
Falaremos depois sobre esse texto, tenho considerações que quero fazer pessoalmente ;D
Q tal aquele cineminha?? Combinaremos!!

Camila Travassos disse...

Como eu sempre digo: em prosa é melhor. (:

Alguns traços do Ubaldo me trouxeram a lembrança do narrador de "Memórias de minhas putas tristes", do Gabo. Fora, claro, algumas outras referências literárias que aparecem no teu texto - como sempre =).

A narrativa é empolgante e nos faz querer chegar ao final rapidamente; mas, como também já te disse, o fato de o final ser previsível se deve a forma como apresentaste esse fim. Talvez se construído de uma outra forma, essa previsibilidade não prevalecesse - e continuo a defender a ideia de que o fim da Clotilde devia ser esse mesmo.

Personagens excêntricos, como nomes incomuns, só saem de mente fértil... =D

Inté!

p.s.: preferi manter o mesmo comentário, apesar de já saberes disso tudo aí =p
(dúvida: como me responderás já que não tenho mais orkut?)

Unknown disse...

Adorei Felipe. Não sabia desse seu "eu lírico" hehehehehe.

Parabéns. Adorei. :)

Unknown disse...

muito bom, continua assim>>>
adorei!!!!

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