quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Belém de outrora





“Somos muito mais a terra onde nascemos
[e onde fomos criados] do que imaginamos”.
(José Saramago)


Chamo-me Sarah. Sou paraense. Tive uma infância feliz, tipicamente belenense. Em uma Belém de outrora que, infelizmente, não existe mais. Existe apenas nas minhas lembranças infantis. Lembranças felizes.

Um dia desses, marcados pelo tédio e a monotonia, estava limpando o meu quarto. Ouvia um pouco de Alceu Valença e Zé Ramalho para me animar – faxina é muito chata, mas necessário; como muitas coisas na vida. Em meio à arrumação, achei alguns vinis velhos ocupando um canto do quarto. Eram vinis de bregas antigos dos meus pais que não deixei jogarem fora – sempre fui de guardar coisas, mesmo que não gostasse; sempre acreditei que carregavam alguma coisa de nós. Felizmente, estava certa.

Marcelo Wal e Roberto Villar. Quando vi esses nomes, veio em minha mente os primeiros feixes de lembrança da minha infância. Não resisti, liguei o toca-disco e ouvi os vinis. A música me deixou, a um só tempo, a despeito da sua animação, ritmo cadenciado e letras piegas, saudosa e nostálgica. Eu revia, olhando aqueles encartes dos discos, os dias de domingo ensolarados, reunidos em família, com todos os parentes em casa, se confraternizando entorno do churrasco, ao som do velho brega. O cheiro de churrasco, cerpa e farrofa vinham na minha memória infante. Meus tios dançando freneticamente, enquanto meu pai tomava conta do churrasco e minha mãe da comida. Eu, meus irmãos e primos ficávamos revezando às vezes de jogar no super Nintendo, enquanto o almoço não ficava pronto – não raras vezes, acontecia brigas, porque um queria jogar mais que o outro. Crianças: são iguais, em suas mal-criações, em qualquer tempo.

E outras lembranças foram se juntando a estas, as quais relacionadas a iguais domingos na Praça Batista Campos, quando meus pais me levavam com os meus irmãos para brincar de futebol e tomar sorvete – bem como, pira-esconde, pira-marromba, e malinar com as crianças menores. Na Praça da República não era diferente, só apenas tinha mais gente, quer dizer, mais crianças para brincar – e crianças maiores que malinavam com a gente. Muitas vezes me perdi, e fui devidamente castigada por isso: não podia assistir o seriado “Chaves” – meus pais eram cruéis, sabiam como castigar. Ou quando íamos ao Bosque Rodrigues Alves, sempre ganhava um brinquedinho de miriti – adorava aqueles brinquedos. Andava descalça pela areia do bosque, lendo todas as plaquinhas das plantas, procurando decorar seus vários nomes que nem entendia o significado. Tirei fotos com todos os animais – gostava mais das araras e outras aves, a pesar do mal-cheiro, que sempre me embrulhava o estômago.

É indelével que os domingos foram dias muito especiais na minha infância. Os RexPa’s merecem uma capítulo a parte. Minha família sempre foi Paysandu, e eu, era remista – a celeuma estava posta. Quando era dia de clássico, geralmente, nos domingos, as provocações já vinham na semana, cada um impunha sua camisa, bandeira, o que fosse e torcia por seu time. Ouvidos atentos, grudados em seus respectivos radinhos de pilha – era incrível aquelas narrativas hiperbólicas, quase toda hora era perigo de gol. O momento mais aguardado: o seu time sagrar-se vencedor. Quando o Remo ganhava, eu encarnava em todo mundo; mas quando o contrário acontecia, eu ficava mufina de tanta encarnação. Não raras vezes pensei em mudar de time. No entanto, era muito azulina para fazer uma tolice dessas. Uma vez remista, sempre remista.

Lembro-me do cheiro da maniçoba, do tacacá, vatapá e pato no tucupi nos tempos do Círio – parece que esses cheiros tomavam uma conotação sobrenatural. O açaí fresquinho acompanhando aquela sarda assada na brasa – só eu e minha mãe gostávamos de sarda, e nos deliciávamos; caro leitor, se ainda não provou, não sabe o que perde. Quando ela trazia sarda do Ver-o-Peso, já sabia que íamos comer só nos duas – minha mãe sempre foi mesquinha com peixe, ela gostava de comer sozinha; não por maldade, mas pelo simples prazer. E eu acompanhava, ficava só nos duas, comendo uma peça gigante de sarda com fartas colheradas de açaí – ela me acostumou a comer sem açúcar, a moda do interior, ou como ela dizia: como bom tapuio. Não era diferente com o camarão, com o caranguejo. O friozinho do vento que trazia a chuva nos fins de tarde – a tão merecida chuva, depois do dia inteiro de calor.
Aquele cheiro de chuva inconfundível de Belém.

A Santa Maria de Belém do Grão-Pará que só vive nas minhas memórias infantis. Somos a imagem e semelhança da terra na qual nascemos e nos criamos, mas do que podemos imaginar – mais uma vez, como sempre, Saramago tinha razão. Belém vive em nós, e nós vivemos em Belém. Esta terra rica, linda e injustiçada. De um povo cortez, trabalhador e, igualmente, injustiçado.

(Felipov)

4 comentários:

Unknown disse...

Impressionante como a infância da década de 1990 me faz falta. Das tardes de brincar na rua, correr brincando de bandeirinha, tomar banho de chuva e de noite sair pra brincar com os coleguinhas. Cara, me lembro de tantas coisas, q nem conseguiria descrever aqui. Mais como te falei, quando escutei a música, as lembranças não foram somente minhas, mas da minha família, sobretudo, dos domingos, todo mundo reunido, cada um fazendo alguma coisa, mas na hora do almoço todo mundo tava junto. Hj é bem diferente, cada um no seu quarto, cada um com seus problemas, viramos ilhas. Só nós reunimos quando falta luz auahuahauhauahua. Enfim, adorei o texto, muitíssimo obrigada, ficou lindo! É a máxima de Saramago, pelo menos pra mim, cai como uma luva! Sou enraizada aqui!

Bjooooo Paaancitaaaaaa #dengo

Nairo Bentes; disse...

Interessante! Gostei do formato, e até do depoimento de Sara ao final...
textos sob encomenda?
Um abraço!!!

Juliana Brandão disse...

Lindooo!!!
Adorei esse texto Felipe! E, Sara, belas recordações! ^^

Tmbm quero um texto sob encomenda, rsrs...

Unknown disse...

Não é bem um texto sob encomenda!! Foi momento de inspiração do querido Felipe! Uma conversinha sem querer querendo kkkkkkkk

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