terça-feira, 19 de outubro de 2010

O alfabetizador

Ontem assisti “Tropa de Elite 2”. O filme é PERTUBADOR, e por causar perturbação, ela se desdobra em angústia e inquietação. E concordo plenamente com aqueles que acreditam que esse é o sentido da arte: causar o estranhamento com a realidade representada, ficcionada, de modo a encaminhar reflexão e ação pensada - ao contrário daqueles que querem "arte pela arte" em moldes bem parnasianos. Como diz o mestre Saramago: "eu vivo dessassosegado, escrevo para dessassosegar". É isso que o filme faz: Dessassosega. Pertuba e Dessassosega. Inquieta e Angustia. Porém, o primeiro filme havia deixado um sentimento: desconfiança. Uma coisa que não tinha gostado na primeira versão, e que se reabilitou no segundo, foi à idéia do "bandido bom é bandido morto", muito bem expresso na narração do Capitão Nascimento. No segundo filme, ele começa com o mesmo discurso, e criticando o professor de História e ativista dos direitos humanos de "defender bandido" – aquele “esquerdista e maconheiro”. Ledo Engano. E ainda bem que, o agora, Coronel Nascimento percebeu que os problemas relacionados à violência no Rio de Janeiro, e, por extensão, no Brasil, não podem ser combatidos pela mera repressão – apesar de indicar isso quando diz que acaba com o tráfico, e no seu vácuo, entra a milícia; mas creio que seja um elemento de construção do roteiro, porque, a meu ver, o tráfico nunca vai ser superado apenas com ações de repressão policial. A questão é mais estrutural, e está relacionado à cultura política brasileira: como participamos da política e como ela participa na nossa vida. Por exemplo: a corrupção produz o bandido que me rouba na esquina. É essa a reflexão que o filme faz. E ela não é uma reflexão fácil, porque requer pensar as mudanças e transformações profundas no que diz respeito ao tipo de sociedade que queremos viver. Por isso que sintetizo o filme na seguinte sentença: o coronel Nascimento é o alterego da sociedade brasileira. Ele, aquele policial honesto e conservador, com um discurso quase fascista, percebeu que a idéia de “bandido bom é bandido morto” não dá conta de resolver o problema do “sistema”, como ele mesmo diz. Porque esse mesmo sistema, em um dos seus elementos vitais, a corrupção, é que precisa ser combatido. É o “malandro de gravata”, o “malandro federal”, é a classe política corrupta que “produz o bandido que precisa ser morto”. E essa mudança de perspectiva representada pelo Nascimento, vejo na sociedade brasileira, embora de maneira embrionária. As pessoas tem compreendido, pelo menos as que tenho contato, que a violência e outros problemas sociais precisam de solução estrutural. Precisa-se modificar a lógica social, o modelo de sociedade no qual vivemos – “o professor de História e ativista dos direitos humanos, maconheiro e esquerdista, tinha razão”. Eu, particularmente, me regozijei com isso – mesmo que essa percepção venha tarde, mas antes tarde do que nunca. E o Nascimento faz isso, quando diz, e lança quase um manifesto: “e a minha luta está só começando” – quase ao final do filme, o que sugere continuação. Nascimento nos diz: sociedade brasileira, abra os seus olhos, porque a luta só está começando. Pensando um pouco mais sobre o filme, lembro a reflexão que Slavoj Zizek faz sobre o processo pós-traumático que passou o mundo ocidental, particularmente, no século XX, em meio a guerras, crises e catástrofes naturais, e início do século XXI, representado pelo 11 de setembro, e que ele não gosta desse conceito para considerar as experiências sociais dos países do "Terceiro Mundo", pois aqui os traumas são provocados e não passam. O filme demonstra isso: somos uma sociedade traumatizada. E para nos encaminhamos para um pós-trauma, temos que necessariamente modificar as relações sociais que produzem esse trauma. Vivemos, infelizmente, em função do trauma. O trauma define e orienta as nossas ações que se traduzem em um sentimento: o medo. É nesse contexto que o discurso de força e violência surgem como solução - para ficar claro, discurso conservador de coloração fascista. É preciso ter cuidado com ele, porque ele é sedutor: promete soluções rápidas e eficazes, porém, em troca de sacrifícios – os seus desdobramentos ditatoriais e de estado de sítio permanente. Urge, portanto, que pensemos soluções que ataquem a raiz dos problemas, no caso, a lógica social em que vivemos, profundamente excludente e desigual, e suas reverberações no campo político. A nossa velha e tão desinteressada política está na ordem do dia. Precisamos, urgentemente, superar o que o Brecht chamou de "analfabetismo político". E parece-me que o Nascimento surge como um alfabetizador. Um alfabetizador que encaminha a reflexão para os problemas estruturais, por exemplo: a corrupção como produtora da violência cotidiana. A corrupção que só pode ser combatida com ações políticas conscientes e coletivas. Claro que não é um processo fácil, e por isso considero feliz a frase: “e a minha luta está só começando”. O processo de alfabetização política está começando – antes tarde do que nunca, insisto. (Uma mensagem subjacente ao texto e que faço questão de explicitá-la é: sejamos pessimistas no intelecto, otimistas na vontade).

9 comentários:

Camila Travassos disse...

Gosto das tuas reflexões, elas se parecem, de certa forma, com os teus textos literários, só que numa estruturação contrária: conhecimento acadêmico mais tuas leituras literárias.

E que bom que postaste esse texto, que a princípio era apenas comentário e scrap ;)

Pessimista no intelecto, otimista na vontade.
o/

Unknown disse...

Eu gostei tanto do texto, que está no twitter como favorito e super indicado! Gostei disso Felipe, te mostrastes um cara além de Drummond! Pena q ainda nao vi o filme, mas , pelos teus comentários, fico à espera de conseguir ingressos. Tocastes em questões que são delicadas e relativas quando discutidas. Me fez refletir e me perguntar: Mas de quem é a culpa? O que devemos fazer? Será que há chances de mudar? Ou algo do tipo? Acho q estou sendo pessimista no intelecto!
Mas se pra tudo dizem ter solução, vamos ver!
Mto bom!!
Bjo

Ana Paula Campos disse...

O melhor do filme foi a companhia, confessa! xD

Rodrigo disse...

Felipov,
Ando sem ânimo pra escrever, comentar, debater, tô me nutrindo nos últimos tempos, fechado pra balanço e isso tinha se juntado as tuas repetições de temas, palavras,conceitos e cafés e c/ drumond que de fato me cansaram. Por isso não havia comentado mais por aqui!Porém tua análise do filme foi mt boa, uma reflexão que nos desestabiliza e inquieta como disseste. O mais interessante do que escreveste é que conseguiste ir além do que o filme mostra, percebendo as rupturas ideológicas que não são observadas em uma primeira análise filmíca devido a linearidade ora do roteiro ora do discurso defendido. Perceberes o discurso digamos que totalitário é importante pra não acabarmos ressaltando o Capitão Nascimento nem como herói nem bandido, pois a arte e, principalmente a realidade política brasileira está para além dessas polarizações!
Depois da tua crítica e da recomendação de Sara criarei coragem pra enfrentar cinemas comerciais ;)

Duas estrelinhas pra ti =)

Tamyris disse...

desculpe, não acho que o maconheiro ativista estava certo, anos depois ele se engajou em uma causa legítima, mas no geral não é o que acontece com os maconheiros ativistas que conheço...

Flaneur - Belém do Pará disse...

Como prometi, li o texto e o comentarei. Em suma, o texto é excelente, é a Face de sua própria trajetória Felipe: 'Histórica' e inquieta, um desassossegado de fato. Uma série de leituras sobre violência me vieram agora, a mais geral que se relaciona com o filme é "Toda violência é social" de Odália. Não uma violência social geral e sem particularidades, antes pensemos que cada sociedade secreta suas próprias violências. Me incomoda ouvir do público "o cinema nacional só sabe falar mal do Brasil" quando na verdade se fala de uma das faces do país, a mais importante: a estrutural. Àquela que atravessa todas as esferas da vida ordinária. Este detalhe o diretor expressou e o representou no "alfabetizador" nascimento que compreendeu e direcionou seu foco para o cerne do problema nacional, uma corrupção que cirurgicamente constrói o caos e no seio deste reconstrói a ordem, ou o estado de coisas pós-traumas como disse o Felipe, ou ainda uma "teoria do Choque". A destruição últil que Schade exemplifica com a frase "somos levados por forças invisíveis às quais os crminosos obedecem sem o saber" ou a que Foucault expressou "matam e aceitam morrer para que, na imobilidade imortal, alguma coisa ocorra, se ponha a viver, a mexer, a questionar, a alterar". Creio, assim, para ser breve Felipe, que o Intelectual deve ser pessimista e desassossegado tammbém, assim como o foi o diretor ao retratar dois filmes sobre violência e suas relações de baixo encarnadas no baiano e na corrupção localizada e, de forma oposta, uma violência globalizante e vista de cima, encarnadas no "sistema".

Unknown disse...

arrazada,adorei o texto mas não fui convidada p ve ro filme com vcs heauhauheuaheuae
adorei o texto felipov!

CA Ribeiro Neto disse...

De tudo que vi sobre o filme, este seu texto é o que melhor explica-o!

Parabéns!

Eduardo Rodrigues disse...

Não fosse o Fraga, o que seria do pobre capitão? O tão odiado agitador, denunciador dos crimes e das barbáries, que as pessoas fazem questão de não levar à sério quando bradam contra o Sistema... Esses, os esquerda, os de luta, os de peito aberto e cara à tapa. Estes sim... São os grandes alfabetizadores.

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