Sinceramente, a vida é bela, fico
encaralhado de ver tanta merda, vou ser fracamente sincero, como jamais fui na
minha inercial existência, valho-me conscientemente da curiosidade inerente a
toda criatura humana, acreditando piamente que vou ser lido ao encerrar desta
enrolação introdutória, sabe, leitor vagabundo, sua leitura se deve a não estar
perdendo horas de sua vida em alguma atividade produtiva que vulgarmente
chamamos de trabalho, ainda bem, existe o ócio, fico indignado em saber que
milhões de brasileiros não podem ler estas linhas, não podem, porque não
conhecem o alfabeto, as letras, as sílabas, as palavras, as frases, um texto,
mais indignado ainda em saber que milhões conhecem um texto, porém não
conseguem identificar suas ideias, ideologias, analfabetos funcionais, idiotas
funcionais, analfabetos políticos, eleitores, cidadãos plenos, eles acham que é
assim mesmo, é o infortúnio divino, provação celeste, testagem da fé, um
rebanho de milhões, obesos, hipertensos, diabéticos, com câncer a prestação,
alimentação de carboidratos e gorduras, barata, conservas, ovo, sardinha,
salsinha, indo garantir suas existências projetadas por uma inteligência
superior, os ônibus lotados são o seu transporte, o calor humano da
solidariedade, salários mínimos, vidas mínimas, a vida valorada em cifrões,
desempregados, serventes, pedreiros, vendedores de loja, autônomos,
aposentados, beneficiários dos programas sociais do governo, todas aquelas
pessoas que sobrevivem no Jurunas, Guamá, Tapanã, Tapajós, amontoados humanos
que habitam áreas urbanamente inviáveis, sem esgoto, água potável, saneamento
básico, engrossando fileiras com outras periferias do mundo subdesenvolvido,
que afligem, pressionam, martelam, angustiam a minha consciência do mundo, o
meu sentimento do mundo, de pessoa leitora de Drummond, que não é nada, mas tem
todos os sonhos do mundo, emprestado de Álvaro de Campos, com Ensino Superior,
em universidade pública, paga por todos os cidadãos brasileiros, a maioria que
nem sabe quem é Marx, Hegel, Nietzsche, Freud, não tem a menor idéia de onde
fica o Cazaquistão, ou o que foi a Guerra dos Seis Dias, ou o que é Sionismo,
Nazismo, Fascismo ou Existencialismo, que não tem tempo para pensar,
pensamento, cada vez mais raro no atual estágio evolutivo dos Homo Sapiens
Sapiens, na verdade, deliberadamente, aqueles seres humanos não foram ensinados
nas artes iniciadas por Sócrates, foram, conscientemente usurpadas de qualquer
possibilidade não que fosse apenas obedecer, aceitar, aquiescer, eu, que
conheço todas as teorias, modelos explicativos, paradigmas filosóficos,
historiográficos, sociológicos, psicológicos, todas as merdas produzidas nos
montes olimpos universitários por doutos ignorantes que acreditam que o
critério de autoridade intelectual datado da esquecida escolástica medieval
sustentam os seus latifúndios epistemológicos, por sua vez, fazendo-os
acreditar por intermináveis ledos enganos que são melhores, mais legais, mais
bonitos, mais inteligentes, mais gostosos, mais, mais, mais que os demais
mortais que igualmente compartilham da mesma condição humana de não cagar
cheiroso, de ocupar um metro quadrado sob a terra com documentos burocráticos
atestando o seu óbito, claro que o tratamento social não é o mesmo, mas a
condição humana é a mesma, mas, eu, novamente, eu, sou cônscio disso tudo,
tenho vocabulário culto, o pedantismo em dia, escrevo palavras difíceis,
herméticas, com status de dicionário: alhures, inexorável, extemporâneo, ouço
Beethoven, Mozart, Chopin, Novos Baianos, Cartola, Noel Rosa, Chico Buarque, eu
gosto de música boa, música de qualidade, eu sou cult, inteligente, descolado,
eu gosto de cinema, sou cinéfilo, de Almodóvar, Kubrick, Tarkovski, Godard,
Rossellini, Pasolini, cinema alemão, russo, italiano, israelense, indiano,
australiano, tento me importar com os demais, com a coletividade, com os
proletários, com os desvalidos, aqueles que são explorados, suas infâncias
usurpadas, os sofrimentos da vida adulta apressados, para sustentar todas
benesses que tive na vida para estar aqui agora escrevendo este texto, situação
que tenho consciência, que me provoca mal-estar, a qual discuto com os meus
amigos nas mesas de bar de botecos considerados redutos intelectualizados,
gasto saliva, gasto vida, bebo a minha consciência considerando ser valida a
discussão sobre os problemas do mundo, volto para minha casa, cama limpa,
ar-condicionado, comidinha da mamãe, o meu conforto, a minha vida de conforto,
eu sei que tenho que fazer alguma coisa, eu sei que o meu conforto é a
reprodução de estruturas sociais, econômicas e culturais que perpetuam a
desigualdade, a miséria, a violência, eu vivo em uma encruzilhada, em uma
camisa de força, da consciência do mundo, da impossibilidade da ação, de romper
definitivamente com a vida bela. Sinceramente, eu quero mudanças, quero uma
sociedade melhor, uma vida melhor, uma vida realmente bela, mas meu atos dizem
que estou cagando pra tudo.
0 comentários:
Postar um comentário