domingo, 22 de abril de 2012

Sinceramente






Sinceramente, a vida é bela, fico encaralhado de ver tanta merda, vou ser fracamente sincero, como jamais fui na minha inercial existência, valho-me conscientemente da curiosidade inerente a toda criatura humana, acreditando piamente que vou ser lido ao encerrar desta enrolação introdutória, sabe, leitor vagabundo, sua leitura se deve a não estar perdendo horas de sua vida em alguma atividade produtiva que vulgarmente chamamos de trabalho, ainda bem, existe o ócio, fico indignado em saber que milhões de brasileiros não podem ler estas linhas, não podem, porque não conhecem o alfabeto, as letras, as sílabas, as palavras, as frases, um texto, mais indignado ainda em saber que milhões conhecem um texto, porém não conseguem identificar suas ideias, ideologias, analfabetos funcionais, idiotas funcionais, analfabetos políticos, eleitores, cidadãos plenos, eles acham que é assim mesmo, é o infortúnio divino, provação celeste, testagem da fé, um rebanho de milhões, obesos, hipertensos, diabéticos, com câncer a prestação, alimentação de carboidratos e gorduras, barata, conservas, ovo, sardinha, salsinha, indo garantir suas existências projetadas por uma inteligência superior, os ônibus lotados são o seu transporte, o calor humano da solidariedade, salários mínimos, vidas mínimas, a vida valorada em cifrões, desempregados, serventes, pedreiros, vendedores de loja, autônomos, aposentados, beneficiários dos programas sociais do governo, todas aquelas pessoas que sobrevivem no Jurunas, Guamá, Tapanã, Tapajós, amontoados humanos que habitam áreas urbanamente inviáveis, sem esgoto, água potável, saneamento básico, engrossando fileiras com outras periferias do mundo subdesenvolvido, que afligem, pressionam, martelam, angustiam a minha consciência do mundo, o meu sentimento do mundo, de pessoa leitora de Drummond, que não é nada, mas tem todos os sonhos do mundo, emprestado de Álvaro de Campos, com Ensino Superior, em universidade pública, paga por todos os cidadãos brasileiros, a maioria que nem sabe quem é Marx, Hegel, Nietzsche, Freud, não tem a menor idéia de onde fica o Cazaquistão, ou o que foi a Guerra dos Seis Dias, ou o que é Sionismo, Nazismo, Fascismo ou Existencialismo, que não tem tempo para pensar, pensamento, cada vez mais raro no atual estágio evolutivo dos Homo Sapiens Sapiens, na verdade, deliberadamente, aqueles seres humanos não foram ensinados nas artes iniciadas por Sócrates, foram, conscientemente usurpadas de qualquer possibilidade não que fosse apenas obedecer, aceitar, aquiescer, eu, que conheço todas as teorias, modelos explicativos, paradigmas filosóficos, historiográficos, sociológicos, psicológicos, todas as merdas produzidas nos montes olimpos universitários por doutos ignorantes que acreditam que o critério de autoridade intelectual datado da esquecida escolástica medieval sustentam os seus latifúndios epistemológicos, por sua vez, fazendo-os acreditar por intermináveis ledos enganos que são melhores, mais legais, mais bonitos, mais inteligentes, mais gostosos, mais, mais, mais que os demais mortais que igualmente compartilham da mesma condição humana de não cagar cheiroso, de ocupar um metro quadrado sob a terra com documentos burocráticos atestando o seu óbito, claro que o tratamento social não é o mesmo, mas a condição humana é a mesma, mas, eu, novamente, eu, sou cônscio disso tudo, tenho vocabulário culto, o pedantismo em dia, escrevo palavras difíceis, herméticas, com status de dicionário: alhures, inexorável, extemporâneo, ouço Beethoven, Mozart, Chopin, Novos Baianos, Cartola, Noel Rosa, Chico Buarque, eu gosto de música boa, música de qualidade, eu sou cult, inteligente, descolado, eu gosto de cinema, sou cinéfilo, de Almodóvar, Kubrick, Tarkovski, Godard, Rossellini, Pasolini, cinema alemão, russo, italiano, israelense, indiano, australiano, tento me importar com os demais, com a coletividade, com os proletários, com os desvalidos, aqueles que são explorados, suas infâncias usurpadas, os sofrimentos da vida adulta apressados, para sustentar todas benesses que tive na vida para estar aqui agora escrevendo este texto, situação que tenho consciência, que me provoca mal-estar, a qual discuto com os meus amigos nas mesas de bar de botecos considerados redutos intelectualizados, gasto saliva, gasto vida, bebo a minha consciência considerando ser valida a discussão sobre os problemas do mundo, volto para minha casa, cama limpa, ar-condicionado, comidinha da mamãe, o meu conforto, a minha vida de conforto, eu sei que tenho que fazer alguma coisa, eu sei que o meu conforto é a reprodução de estruturas sociais, econômicas e culturais que perpetuam a desigualdade, a miséria, a violência, eu vivo em uma encruzilhada, em uma camisa de força, da consciência do mundo, da impossibilidade da ação, de romper definitivamente com a vida bela. Sinceramente, eu quero mudanças, quero uma sociedade melhor, uma vida melhor, uma vida realmente bela, mas meu atos dizem que estou cagando pra tudo.

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