Domingo.
Igreja lotada.
Burburinhos, conversas paralelas.
Dízimos, ofertas recolhidos.
Orações, louvores cantados.
Silêncio.
A pregação.
“Boa noite, amados irmãos. A paz do Senhor. Hoje, farei algo
diferente. Hoje, não falarei da vida eterna, da salvação, do inferno, ou do
juízo final. Já estamos fartos disso. É necessário ampliarmos o nosso
conhecimento. Sabemos demasiadamente de doutrina, dogma, teologia barata. Não
praticamos a nossa verdade.
Hoje, quero tratar da vida terrena, da vida humana, da condição
humana. Tratarei de um sermão, um sermão esquecido, pouco lido, pouco
discutido, que considero fundamental. Primeiro, eu não vou gritar – por isso,
espero atenção. Não vou dizer ‘Aleluias’ e nem ‘Glórias a Deus’. Ele não
precisa disso. Não precisa de histeria, gritos, barulho. Deus não precisa de
nós. Ele apenas precisa que o ignoremos, no sentido dessa bajulação,
penitência, glorificação excessiva, descabida, inócua. Ele é Deus, em seu
infinito poder, amor, bondade, misericórdia. Onipotente, onipresente,
onisciente.
Assim, vamos ao sermão. O famoso Sermão da Montanha. Umas das
primeiras e mais importantes preleções de Jesus. Ele está registrado no
Evangelho segundo escreveu o apóstolo Mateus, neste momento, em sinal de
reverência, fiquemos de pé para leitura, abram suas escrituras no capítulo
cinco, leiamos do versículo três ao doze.
Leitura:
Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o Reino
dos Céus! Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra! Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça, porque serão saciados! Bem-aventurados os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia! Bem-aventurados os puros de
coração, porque verão Deus! Bem-aventurados os Defensores da Paz, porque serão
chamados filhos de Deus! Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da
justiça, porque deles é o Reino dos Céus! Bem-aventurados sereis quando vos
caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós
por causa de Mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa
nos céus, pois assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós.
Por favor, tomem assento. Amados irmãos, como foi possível
observar na leitura, vou tratar das bem-aventuranças. Jesus apresenta-nos o
Reino dos céus. Todavia, sua exposição fora profundamente humana, não raro ele
liste as razões para sermos, nós, seus seguidores, nós, cristãos, nós, filhos
de Deus, nós, os salvos, nós, os justificados, nós, os remidos, nós, os
bem-aventurados, os felizes, os venturosos, os afortunados nesta vida terrena,
no hoje, no aqui, no agora.
Portanto, é necessário ser humilde. Ele deu o maior exemplo de
humildade, lavando e beijando os pés de seus discípulos, vivendo na pobreza,
demonstrando que a simplicidade, e a humildade que lhe é subjacente, é o maior
sinal de respeito para consigo e os seus semelhantes.
É necessário chorar, sofrer. É no sofrimento, na dor, na
angústia que descobrimos nossas reais capacidades, nossos limites, nossas
possibilidades. Chorar é a demonstração física da dor humana, é materialização
do sofrimento. No entanto, o consolo, o alento, o conforto encontram morada em
nosso coração para nos provar que somos fortes, que a tempestade finda com a
bonança, que o mel estanca o fel, que tem um porto seguro no fim da tempestade.
É necessário ser manso. Não confundir mansidão com ser feito de
tolo, bobo, idiota. Ser manso no sentido de ter sempre uma atitude receptiva,
aberta ao diálogo, agradável, serena. Essa é a atitude digna daqueles que
possuirão a terra, que possuirão suas metas, que possuirão seus objetivos, que
possuirão os seus desígnios.
É necessário ter fome e sede de justiça. A indignação é o
fortalecimento do senso de justiça. Não podemos ficar indiferentes. Temos que
nos posicionar frente às injustiças do mundo. Não podemos compactuar com a
impunidade, com a indignidade, com a indiferença. Só assim seremos saciados.
É necessário ser misericordioso. O coração aberto ao perdão, a
reconciliação, a clemência é tal qual a videira plantada próximo ao rio, suas
folhas jamais secarão, será sempre frondosa, e sempre dará frutos. Ter um ato
de misericórdia com o outro é simplesmente um atitude para consigo mesmo, seja
misericordioso, receba perdão.
É necessário ter pureza de coração. É apenas com um coração puro que
conseguiremos ver as pessoas como elas realmente são. É apenas com um coração
puro que superamos a mesquinhez que nos tolhe de vivermos relações plenamente
humanas. É apenas com um coração puro que conseguimos ver o outro com uma
extensão de nós mesmos.
É necessário promover a paz. Nada melhor o que ter a paz com a
sua própria consciência. Paz consigo mesmo. Não ter o peso da culpa, do
remorso, do receio sobrecarregando nossas consciências, consciência limpa é a
paz que todos nós necessitamos.
Amados, estas são algumas considerações preliminares para o que
eu realmente quero discutir. As bem-aventuranças são alguns pontos que Jesus
apresentou para a vida de seus fiéis sobre a terra, das quais eu subscrevo
totalmente.
Contudo, tenho muitas reservas quanto ao ‘Ide’. Eu fiz todo essa
introdução para tratar especificamente sobre o ‘Ide’. Jesus deixou claramente
expresso: ‘Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura’ – no
Evangelho segundo o apóstolo Marcos, capítulo dezesseis e versículo quinze.
Eu vou ser bem claro: sou contra a dimensão apostólica de nossa
fé. Se eu considero a Bíblia como a verdade, e tenho o cristianismo como visão
de mundo, não é para convencer ninguém de que isso seja a verdade. Ela é a
verdade para mim. Ela é a verdade para você. Ela é a verdade para nós. A nossa
verdade. Ela não pode ser para os outros. Nesse sentido, devemos ser
bem-aventurados. Devemos cultivar todas aquelas prescrições dadas por Jesus. É
necessário ressaltar: não tem como ser bem-aventurado querendo convencer a
todos que a nossa crença seja a verdade.
Não temos essa obrigação, não precisamos nos prestar a esse
papel que vai de encontro a uma dimensão fundamental nos legada por Deus: o
Livre Arbítrio. O ‘Ide’ contradiz frontalmente o princípio do livre arbítrio.
Meus amados irmãos, nós não podemos impor a nossa verdade a
ninguém. Não podemos ser tão arrogantes. É necessário ampliar os nossos
conhecimentos. É necessário que pratiquemos a alteridade. Precisamos respeitar
as outras visões de mundo. Precisamos respeitar as outras verdades. É somente
assim que conseguiremos praticar a nossa verdade. Somente assim conseguiremos
alcançar a bem-aventurança sobre a terra, aqui e agora. Se hoje somos
perseguidos por conta de nossas crenças isto está diretamente relacionado à
imposição intolerante da nossa verdade. Temos que considerar que a verdade que
defendemos não seja a verdade dos nossos semelhantes.
Deus simplesmente não existe para aqueles que não acreditam
nele. Ele não quer que acredite nele. Ele não precisa disso. O que ele quer é
que não sejamos maniqueístas. Que dividamos a humanidade entre salvos e
perdidos, entre os que vão para o céu e o inferno e assim por diante. Aqueles
que não acreditam em nossa verdade não precisam do nosso julgamento, precisam
apenas do nosso amor.
Ele quer que cumpramos o paradigma moral fundante do
cristianismo: amar o teu próximo como si mesmo. A bem-aventurança plena nesta
vida terrena só vai ser alcançada quando percebermos que o Reino de Deus está
em nós.
Eis o sermão desta noite: o Reino de Deus está em vós”
Igreja vazia.
Bancos vazios.
Apenas Deus no fundo.
Aplaudindo de pé.
(Felipov)
3 comentários:
Muito interessante....
Gabi Brasil
Se eu fosse Deus, jogaria uns tomates.
;)
Tmbm aplaudo vc, Felipov.
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