Crime: uma mãe ensimesmada que não aceita as idiossincrasias da filha. Castigo: a mágoa e ressentimento da filha. É sob essa perspectiva que transcorre o diálogo, um desabafo da filha e a resignação da mãe, após anos de separação. A discussão entre mãe e filha é vista sob a ótica do conflito existencial tão peculiar aos filmes de Bergman.
Por um lado, a mãe, renomada e conhecida pianista, com fama internacional, bem-sucedida e realizada profissionalmente, que em nenhum momento de sua vida renunciou ou colocou em segundo plano a sua carreira em nome da filha, para cuidar de sua educação e formação. Sempre autoritária e castradora, criou a filha de acordo com os seus caprichos e vontades, submetendo-a e moldando-a aos seus desígnios pessoais e profissionais. Severidade, disciplina e privações extremas, e com pouco amor e afeto foram os elementos que conformaram a educação da filha.
Por sua vez, a filha, uma pacata dona-de-casa, procurou se formar como um espelho que refletia de modo amorfo as imposições e grosserias da mãe. Frágil, languida e sensível, queria a todo o momento agradá-la, conseguir a sua aprovação e apreço. Em vão. Nunca era o bastante. A preocupação em se submeter a sua vontade, aos seus gostos e disciplina, fez com que se formasse uma pessoa sem personalidade, autodeterminação individual, auto-estima e vontade própria. Mulher formada, a filha, vivia para ter a aprovação alheia, fazer a vontade e os desejos do outro – e no inconsciente, fazer a vontade castradora da mãe. Isto está posto e é esclarecido na cena do diálogo entre mãe e filha na madrugada, aos goles de vinho. No entanto, antes dessa cena, há outra cena-síntese do filme tão importante quanto: a cena do piano. A cena do piano e a cena do diálogo são as sínteses do argumento do filme: a existência em função do Outro.
E, faço neste breve texto de impressão do filme, a relação com a idéia central do “Crime e castigo” de Fiódor Dostoiévsky, no qual Raskolnikov, jovem e brilhante estudante de direito, em favor da sua teoria dos homens ordinários e extraordinários, acaba cometendo um homicídio. Contudo, por conta de sua consciência moderna, percebe a real dimensão do seu ato, e por um rígido questionamento moral, de matriz judaico-cristã, toma ciência do seu erro, da sua culpa, e procura expiar essa infração com o castigo destinado socialmente para quem comete um crime: o cerceamento da liberdade – portanto, expiar a sua culpa do crime por meio do castigo.
Por analogia, após a breve digressão, na cena do diálogo, a mãe toma ciência do crime que comete na criação da filha: o “homicídio” de sua vida psíquica. Na constituição do Ego anômalo da filha, quer dizer, na formação de um Superego castrador. E ao tomar consciência disso, a culpa começa a consumi-la. Nesse movimento de autocrítica, inicia a observação de sua vida em perspectiva, e a fazer um inventário dos seus equívocos e erros na sua relação com a filha.
Assim, relaciona passado e presente em um monólogo existencial: “Às vezes, quando fico acordada à noite, me pergunto se realmente tenho vivido. Será que é assim, para todo mundo? Ou será que algumas pessoas têm mais talento para viver do que outras? Ou será que há pessoas que nunca vivem? Mas simplesmente existem? Então, o medo me pega e vejo um retrato horrível de mim mesma. Eu nunca amadureci. Meu rosto e meu corpo envelheceram, mas por dentro nunca nasci”.
“Sonata de outono” é um dos filmes de Bergman que, a meu ver, apresenta de forma mais latente o conflito existencial da submissão do Ego ao Superego, quer dizer, da autodeterminação individual em favor de viver em função do Outro – no caso, a constituição anômala da estrutura psíquica, da relação dialética entre Ego, Superego e Id.
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