segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
Superação!
Não quero passar pelas ruas e vislumbrar a miséria
Engendrada pela lógica D-M-D’
Lógica esta que degrada as relações humanas
Estimulando a acumulação em detrimento da eqüidade
Acumulação?
Acumulação: elogio da propriedade privada.
Em tempos de fetichismo da mercadoria
A felicidade que não esta ligada a
mercadoria é julgada com menor consideração: fora de moda.
Fetichismo e reificação estão na ordem do dia.
Então, em tal contexto, surgi à questão:
como superar tal estrutura?
Somente pela tomada da consciência da mesma
(Onde a luta de classes tem arena privilegiada, como outrora disse um sardo)
Que no senso comum é tomada como natural - letargicamente.
E pelo vislumbre da possibilidade de superação
Mobilizar os agentes da transformação:
pessoas simples com grandes aspirações:
uma existência mais justa e digna de ser vivida
Forjar com tais pretensões a construção de outro mundo
Onde o extraordinário seja cotidiano.
(Felipov)
Piada do XIX
Um dia desses
lendo Lauro Sodré
e suas críticas ao catolicismo,
metafísica e teologia
Ele satiriza dizendo
que na lógica matemática
1+1+1 = 3
Enquanto que a teológica
1+1+1= 1
Eu ri
(Felipov)
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Clotilde
Quando levantei, senti um cheiro forte de rosas e suor. Cheiro de rosas dos amores trágicos. Era o seu cheiro, depois de uma noite intensa de amor. Havia, no seu corpo nu, um cheiro natural de rosas – ela estava deitada de lado, em posição fetal, deixando-se ver apenas as suas costas e nádegas desnudas, com as pernas cobertas pelo lençol de linho branco que havia lhe presenteado. Cheiro onírico, denso e purificador – sobrenatural, diria. Ela roubava o cheiro das rosas – contrariando Cartola. Fiquei impressionado. Clotilde sempre fora rude, fechada, e pouco afeita a carinhos, calada, tacirtuna – sobretudo, independente e autônoma. Aprecio pessoas assim. Comunicava-se através do seu olhar dissimulado e oblíquo, e gestos leves e expressivos – mas fazia seu trabalho com destreza, era profissional. Porém, nesta noite, ela me mostrou a sua verdadeira face: a face do amor.
Era seu cliente fiel – no entanto, não gostava que ela me visse assim; era apenas um amigo que a amava deveras. Visitava-a todas as semanas – ou ela me visitava, revezávamos. Há uns seis meses. Tinha vinte e cinco primaveras de vida. Formosa, farta em carnes, cabelos ondulados, tez alva, com mãos e pés delicados, era pequenina e frágil. Naturalmente bela. Não precisava de maquiagem ou quaisquer outros artifícios estéticos para ficar bonita. Sua beleza, simplesmente, irradiava felicidade e ternura.
Contudo, era triste. Havia me contado de sua vida. Nascera em berço de ouro, pais bem-sucedidos, mãe empresária e pai advogado. Sabia falar francês, italiano e alemão – treinava meus rudimentos de francês e alemão com ela. Tocava piano e clarinete – ela tocava piano muito melhor que eu, às vezes se perdia tocando no piano de casa, de modinhas, blues à Bach, Chopin era sua especialidade; adorava quando tocava “la polonaise”, era a sua música. História e literatura, música e cinema eram suas paixões, desde a tenra idade. Mas, ainda na infância, um evento fatídico mudou sua vida: na décima primavera, o irmão do seu pai abusou de sua inocência. Gostou tanto, que se tornou ninfomaníaca. E acompanhante, sua profissão. Atendia em casa, ou residência. Cobrava caro – tinha consciência do refinamento dos seus serviços. Valia cada centavo.
Chamo-me Ubaldo. 85 anos. Viúvo há vinte anos. Não tenho filhos. Professor universitário: filosofia clássica alemã. Comunista não-praticante. Vivo no centro da cidade, em um apartamento gigante, abarrotado de livros, vinis e um piano. Moro só, com o meu gato branco chamado Che. Rotina: dar aula, tocar piano, ler, ouvir música, fumar charuto e sair com alguns amigos dos tempos do partido. Essa vida pacata modificou-se quando falei com um desses amigos que queria uma acompanhante, com uma especificidade: bela e inteligente. Constantino me deu o cartão de Clotilde. Fiquei muito curioso e marquei logo um encontro – na verdade, uma entrevista, queria mesmo ver ser era linda e inteligente.
A minha frieza senil ficou abalada ao vê-la. Uma paixão avassaladora brotou no meu coração seco e árido. Senti-me um infante apaixonado, fiquei nervoso, coração acelerado, mãos suadas – fazia décadas que não sentia isso. E isso tudo ao simples toque dos meus olhos naquele ser mitológico, que não pertencia esse plano mortal e vil. Sóbria, séria e lacônica, me cumprimentou e se apresentou. Fiquei intimidado, com a primeira impressão. Almoçamos juntos. Conversamos a tarde inteira. Tomamos algumas caipirinhas – ela adorava. Fiquei mais impressionado com os conhecimentos dela. Era perfeita. Quando lhe disse que era professor de filosofia, ela se empolgou, e foi falando de suas preferências e críticas. E a conversa transcorreu naturalmente, como se nos conhecêssemos há muito tempo.
Era uma idealista convicta, leitora voraz de Hegel – profissionalmente, sou estudioso de Hegel, politicamente marxista. Ela falou que não conhecia muito do barbudo chato metido a mudar o mundo – ri da sua ironia reacionária. Música clássica, Villa-Lobos, sambas de Adorinan Barbosa, Cartola, Noel, Chico Buarque, Blues e Ska faziam parte do seu repertório no piano. Em literatura: Jorge Amado, García Marquez, Mann, Joyce e Tolstoi. Eu apenas fazia uma pergunta simples e ela respondia com uma graça, leveza, gestual e olhares, de um conteúdo denso e maduro. Tinha até me esquecido do propósito do nosso encontro. Fiz uma última pergunta: “Por qual razão estais nessa vida??”. Ela respondeu, seca e sacanamente: “Gosto muito de trepar”. A única conclusão que tirei foi: ela tinha vindo de Lesbos, e fora discípula de Safo.
Depois da conversa, fomos para meu apartamento. Ela ficou feliz de ver o piano e tocou duas músicas – as quais não lembro agora. Estava tão encantado. Fomos para o quarto e tivemos uma noite épica, que terminou com ela dizendo: “me destes uma canseira seu velho viril” – fiquei extasiado. Daí em diante, toda a semana nos encontrávamos. Um encontro melhor que o outro. Não foram poucas as vezes que pedi para ela morar comigo e deixar essa vida. Que era a minha vida. O amor de uma vida. O meu amor da velhice. Todavia, ela se irritava e dizia que se continuasse, nunca mais iria me ver. Então, calava. Isso foi até ontem, quando ela demonstrou o seu amor. O seu cheiro habitual de rosas estava mais forte. E ela disse-me, ao pé do ouvido, quando os nossos corpos estavam moribundos e suados de tanto prazer: “sou tua Safo”. Nunca tinha sentido aquela alegria na vida, pela primeira vez sentia o que era felicidade. Entretanto, fora efêmero.
Estou vindo agora do seu enterro. Foi brutalmente estrupada e morta com dois tiros no peito, em seu apartamento, quando arrumava seus pertences para mudar para o meu. Ao seu lado, estava o corpo de Gervásio, com um tiro na boca. Ele era um dos meus camaradas do partido. Soube depois que ele era perdidamente apaixonado por ela. E não agüentou saber que ia morar comigo – Constantino havia lhe dito. Quando vi a terra sendo jogada em cima do ataúde, não tinha mais lágrimas, elas já haviam secado, apenas meu coração gritava em desespero. Da sepultura fechada exalava o cheiro de rosas dos amores trágicos – agora que compreendi que era um aviso. Estou em casa e acabei de tocar “la polonaise” em sua homenagem. Minha querida Clotilde voltou para a sua ilha no mar Egeu. Acabei de girar a ampulheta, espero a minha hora.
(Felipov)
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
Cãozinho
Vou-me embora
Deixo a minha vida
Uma antiga vida
Uma vida sem mim
Esse calor, violência, e
trânsito que só me
fazem definhar
Vou-me embora
Às minhas costas
ficam dores, sonhos
Compromissos
Obrigações
Problemas
Paixões
Amores
Amizades, sobretudo
Preciso mudar
mudar de mim,
mudar dos outros,
mudar de vida.
Vou-me embora
O mar cubano me espera
com o seu calor e
as brisas geladas
ao som de ska
As montanhas andinas
me aguardam
para as viagens de
motocicleta
O nordeste é minha casa
com seu sotaque e melodia
de Alceu e companhia
Vou-me embora
Sem remorso
Sem resignações
Sinto apenas: saudades
Um saudosismo antecipado
A falta, a ausência antecipada
Contudo, inevitavelmente,
esse cão, cãozinho
vai no meu coração
alentando e alegrando
sua tristeza da partida
(Felipov)
Ps: esses versinhos tortos foram feitos em homenagem a Rafaela e Andressa - dois cãeszinhos do meu coração.
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
O espelho da branca de neve
“Párias na ambição de parecer grande.
Monte de tijolos com pretensões a casa”
(Ultimatum – Álvaro de Campos – 1917)
Conhecia-o há pouco tempo – ainda bem. Teve o fim que merecia. Devia ter uns quarenta anos – no entanto, aparentava ser muito mais velho. Usava um terno bem cortado, apesar de ser visivelmente de segunda mão. Sapatos engraxados, para dar um ar de ordem e sobriedade – bem como disfarçar, pois são igualmente de segunda mão. Cabelo e bigode bem aparados, e muito grisalhos – denunciavam o evidente avançar da velhice, embora tenha pouca idade. Branco de cabelos ondulados, sempre impecavelmente penteados. Alto e magro. Postura ereta e voz empostada. Era naturalmente troçador e desdenhador de qualquer ao seu lado. Detalhista e inteligente, ele procurava defeitos em tudo. Suas críticas eram feitas sempre com tom de auto-promoção. Um jeito arrogante e prepotente que conseguia irritar a todos – óbvio, que todos calam. Gracindo era seu nome.
Trabalhávamos na mesma repartição pública: um cartório. O cartório Sodré. Ele era meu supervisor. Chamo-me Gonçalo. Trabalho no setor de autenticação de propriedade – uma vez regularizada, ela tem que ser autenticada, enfim, pilhérias da burocracia. Vivo dessas pilhérias. É simples: eu carimbava e ele assinava. Carimbar e assinar: o simples que atrapalha a vida de todos. Quer dizer, nem todos: apenas os proprietários. Tudo era muito perfeito na vida do Gracindo. Ele tinha uma linda família, com mulher e filhos que lhe amavam, e um emprego razoável, com subordinados.
Contudo, tinha uma vontade incessante de demonstrar poder. Em tudo. Que ele mandava e desmandava. E que tudo dependia dele. Centralizava. Verticalizava. Gostava de manter o controle. Reafirmava as hierarquias. Ele era o melhor, e tudo o que fazia era igualmente melhor. Mantinha seu poder através da lógica dos favores: o velho “toma lá dá cá”. A base do seu poder eram bajuladores e puxa-sacos. Era esquizofrênico. Egocêntrico. Vingativo. Dissimulado. Que não suportava ser contrariado. Nunca estava errado. Sempre, incorrigivelmente, certo. O seu apelido tácito na repartição era “branca de neve” – em razão da bruxa da branca de neve e o seu dito “espelho, espelho meu existe alguém melhor do que eu”. Era apenas um pária que sempre fez questão de humilhar os outros. Assédio Moral. Promessas de retaliação. Exercia seu poder da forma mais espúria e impune. Era a maldade travestida de pessoa honrada e séria.
Entretanto, um dia a justiça chegou, com o seu castigo e punição. Roberval era meu estagiário. Recém-chegado a repartição, ele organizava as fotocópias dos documentos que eu carimbava, e depois encaminhava para serem assinados. Um dia, Gracindo humilhou-o na presença de toda a repartição. Humilhou-o mortalmente – apenas com o prazer de reafirmar hierarquias. No dia seguinte, Roberval, enfurecido, com sangue no olho, deu dois tiros no peito dele, na frente de todo mundo na repartição. E disse, depois dos disparos: “Ele precisava respeitar os outros. Pena que não aprendeu isso em vida”. Caro leitor, sabe aquela venha máxima: até que ele encontre um doido pela frente. Gracindo achou. O tijolo que se arrogava casa, virou pó.
(Felipov)
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Belém de outrora
“Somos muito mais a terra onde nascemos
[e onde fomos criados] do que imaginamos”.
(José Saramago)
Chamo-me Sarah. Sou paraense. Tive uma infância feliz, tipicamente belenense. Em uma Belém de outrora que, infelizmente, não existe mais. Existe apenas nas minhas lembranças infantis. Lembranças felizes.
Um dia desses, marcados pelo tédio e a monotonia, estava limpando o meu quarto. Ouvia um pouco de Alceu Valença e Zé Ramalho para me animar – faxina é muito chata, mas necessário; como muitas coisas na vida. Em meio à arrumação, achei alguns vinis velhos ocupando um canto do quarto. Eram vinis de bregas antigos dos meus pais que não deixei jogarem fora – sempre fui de guardar coisas, mesmo que não gostasse; sempre acreditei que carregavam alguma coisa de nós. Felizmente, estava certa.
Marcelo Wal e Roberto Villar. Quando vi esses nomes, veio em minha mente os primeiros feixes de lembrança da minha infância. Não resisti, liguei o toca-disco e ouvi os vinis. A música me deixou, a um só tempo, a despeito da sua animação, ritmo cadenciado e letras piegas, saudosa e nostálgica. Eu revia, olhando aqueles encartes dos discos, os dias de domingo ensolarados, reunidos em família, com todos os parentes em casa, se confraternizando entorno do churrasco, ao som do velho brega. O cheiro de churrasco, cerpa e farrofa vinham na minha memória infante. Meus tios dançando freneticamente, enquanto meu pai tomava conta do churrasco e minha mãe da comida. Eu, meus irmãos e primos ficávamos revezando às vezes de jogar no super Nintendo, enquanto o almoço não ficava pronto – não raras vezes, acontecia brigas, porque um queria jogar mais que o outro. Crianças: são iguais, em suas mal-criações, em qualquer tempo.
E outras lembranças foram se juntando a estas, as quais relacionadas a iguais domingos na Praça Batista Campos, quando meus pais me levavam com os meus irmãos para brincar de futebol e tomar sorvete – bem como, pira-esconde, pira-marromba, e malinar com as crianças menores. Na Praça da República não era diferente, só apenas tinha mais gente, quer dizer, mais crianças para brincar – e crianças maiores que malinavam com a gente. Muitas vezes me perdi, e fui devidamente castigada por isso: não podia assistir o seriado “Chaves” – meus pais eram cruéis, sabiam como castigar. Ou quando íamos ao Bosque Rodrigues Alves, sempre ganhava um brinquedinho de miriti – adorava aqueles brinquedos. Andava descalça pela areia do bosque, lendo todas as plaquinhas das plantas, procurando decorar seus vários nomes que nem entendia o significado. Tirei fotos com todos os animais – gostava mais das araras e outras aves, a pesar do mal-cheiro, que sempre me embrulhava o estômago.
É indelével que os domingos foram dias muito especiais na minha infância. Os RexPa’s merecem uma capítulo a parte. Minha família sempre foi Paysandu, e eu, era remista – a celeuma estava posta. Quando era dia de clássico, geralmente, nos domingos, as provocações já vinham na semana, cada um impunha sua camisa, bandeira, o que fosse e torcia por seu time. Ouvidos atentos, grudados em seus respectivos radinhos de pilha – era incrível aquelas narrativas hiperbólicas, quase toda hora era perigo de gol. O momento mais aguardado: o seu time sagrar-se vencedor. Quando o Remo ganhava, eu encarnava em todo mundo; mas quando o contrário acontecia, eu ficava mufina de tanta encarnação. Não raras vezes pensei em mudar de time. No entanto, era muito azulina para fazer uma tolice dessas. Uma vez remista, sempre remista.
Lembro-me do cheiro da maniçoba, do tacacá, vatapá e pato no tucupi nos tempos do Círio – parece que esses cheiros tomavam uma conotação sobrenatural. O açaí fresquinho acompanhando aquela sarda assada na brasa – só eu e minha mãe gostávamos de sarda, e nos deliciávamos; caro leitor, se ainda não provou, não sabe o que perde. Quando ela trazia sarda do Ver-o-Peso, já sabia que íamos comer só nos duas – minha mãe sempre foi mesquinha com peixe, ela gostava de comer sozinha; não por maldade, mas pelo simples prazer. E eu acompanhava, ficava só nos duas, comendo uma peça gigante de sarda com fartas colheradas de açaí – ela me acostumou a comer sem açúcar, a moda do interior, ou como ela dizia: como bom tapuio. Não era diferente com o camarão, com o caranguejo. O friozinho do vento que trazia a chuva nos fins de tarde – a tão merecida chuva, depois do dia inteiro de calor.
Aquele cheiro de chuva inconfundível de Belém.
A Santa Maria de Belém do Grão-Pará que só vive nas minhas memórias infantis. Somos a imagem e semelhança da terra na qual nascemos e nos criamos, mas do que podemos imaginar – mais uma vez, como sempre, Saramago tinha razão. Belém vive em nós, e nós vivemos em Belém. Esta terra rica, linda e injustiçada. De um povo cortez, trabalhador e, igualmente, injustiçado.
(Felipov)