domingo, 5 de setembro de 2010

Um sonho

Primeiro, foi ela quem me encontrou. Dou graças até hoje por isso: sou incorrigivelmente tímido e sem iniciativa. Apenas olho, contemplo e observo. Sem qualquer pretensão ou ação. Claro que tenho os meus lampejos, ou melhor, os meus espasmos de atitude e iniciativa. Eles são raros. Já tentei me perguntar o porquê disso. Foi mais uma boa pergunta sem resposta – das muitas que já fiz a mim sobre mim mesmo.

Mas, enfim, quero falar dela. Do encontro.

Quando a vi pela primeira vez, eu estava sentado no banco da praça que tem perto da vizinhança, lendo o jornal, ela passou com alguma rapidez, com uma sacola de pães nas mãos, dirigindo-se a sua casa. Trocamos olhares. Seus olhos me encantaram no primeiro instante. Não havia nada de especial neles, mas eles me encantaram, pois expressavam a sua alegria e melancolia. Certa vez, na minha leitura matinal, ela sentou do meu lado. Pensei que fosse outra pessoa qualquer, um dos meus amigos comentaristas de futebol ou política. Quando a vi, fiquei um pouco surpreso. Ela percebeu a minha surpresa e deu um leve sorriso, e sorri com ela. Disse: “Já tomaste café?” – bastante solicita. Pensei e respondi: “Ainda não” – um tanto envergonhado.

Fomos a um café perto da praça.

Pedimos dois capucchinos e começamos a conversar.

Falou-me de sua vida, das suas preferências e gostos culturais e posicionamentos políticos. Disse-me que gosta do teatro e poesias de Brecht, dos romances de Saramago, Dostoiévski, Mann e Joyce, e ter especial predileção por Florbela Espanca. Discorria com tanta propriedade sobre literatura, apresentando suas impressões e preferências, detalhes, personagens, citava partes inteiras de memória – ela falava com as mãos também, gesticulava com tanta graça, efusividade e gravidade. Fiquei impressionado com tamanha demonstração de erudição literária. Sobre música não foi diferente. Ia da música clássica, passando pelo rock progressivo, a música brasileira, do samba, mutantes, Chico, Caetano, a Paulo Diniz – e cantava alguns trechos com tanta graça e charme, com uma voz linda de soprano. Emudeci. Apenas apresentava minhas opiniões e gostos de forma lacônica.

Queria apenas ouvi-la.

Queria apenas que me encantasse.

Quando começou a falar sobre política – mas já tinha percebido que era uma crítica do liberalismo, do casamento, a favor do aborto, na verdade, pelo pouco que percebi, em matéria de política, ela era daquelas que “devemos aceitar tudo, menos o que pode ser mudado” –, a garganta já estava seca, e percebemos que o capucchino estava demorando.

O capucchino já estava vindo.

Nesta hora, ela parou de falar e olhou-me nos olhos.

Ela viu como eu a chamava, fiquei um pouco envergonhado, e toquei as suas mãos. Agora, foi ela quem corou, cheguei mais perto e toquei os seus cabelos. Mais perto cheguei, e senti o seu cheiro inebriante. Mais perto ela chegou, elogiou meus olhos verdes, e afagou-me a barba.

O capucchino chegou.

E eu acordei.

Pena que tenha sido apenas um sonho.

10 comentários:

Ana Paula Campos disse...

P.S: Não foi um sonho, mas foi surreal ;)

Unknown disse...

nossa q inveja dessa mulher meio diva,meio inexistente!!
Acho q no fundo qremos ser assim,aquela dos sonhso de alguem ^^
Claro que algumas poucas opinioes diferentes....hehehehe
otimo texto felip

Dona Horta disse...

Sou que nem o Mario Prata "Me apaixono por pessoas que sabem usar as vírgulas" :)

E se eu me apaixonar por ti a culpa é de Mario Prata ahaha

Texto muito bom!Apaixonante!

Parabéns! Continue escrevendo

Anônimo disse...

Excelente texto, gostei de verdade, amiguinho do meu ser! =D

Rodrigo disse...

Duas estrelinhas pelo texto. Evoluiu a escrita, a forma de escrever sobre o mesmo tema ¬¬, e a dinâmica do texto me impressiounou!!
Muito bem, Felipov!!!

Pedro disse...

Olha só, um sonho presente na vida, neh? Até me identifiquei, já tive esses sonhos. heheheeh

Juliana Brandão disse...

Adorei o texto!
Me fez ficar sem ar no final. E concordo com a Samantha: "Acho q no fundo qremos ser assim,aquela dos sonhso de alguem". Gostaria de ser a mulher desse sonho: cheia de iniciativa e de propriedade acerca dos assuntos que fala.
O Rodrigo tem razão quando diz que vc é monotemático; no entanto, não és repetitivo.

Obs.: Gostas msmo de um capucchino, não é?! =D

Nairo Bentes; disse...

Apesar do título... durante o texto nos esquecemos que se trata de um sonho, e no final quando o capucchino chega.... tamanha surpresa!! Sonho! aih retornamos ao título.

Juliana Brandão disse...

Isso!
Excelente observação a do carinha logo a cima! =)

Edgar Cabral Viegas Borges da Cruz disse...

Grande Rolo,

é por essas e outras q costumo dizer q sou teu fã, meu camarada.

Forte abraço

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