sábado, 11 de setembro de 2010

Morgana

Minha mãe morreu ontem. Recebi a notícia hoje. E vou ao enterro amanhã. Ela chamava-se Elvira. Dona Elvira. Estou arrumando a mala. Ela morava longe. Ela já estava longe a muito tempo de mim. Não nos dávamos muito bem. Saí de casa aos 18 anos – hoje estou com 25. Ela nunca me aceitou. Nunca aceitou minhas idéias e o meu jeito de encarar a vida. Sempre muito rígida e preocupada com o que outros pensariam. Em ser motivo de fofocas ou piadas. Muito religiosa, queria que eu vivesse na igreja. Que eu fosse obediente, prendada, calada e uma ótima esposa. E que tivesse como marido um homem da igreja e com emprego fixo – funcionário público, de preferência. Honrado, reto, integro, sem vícios e família bem falada. Eu fui a única dos meus irmãos que não casei, não flertei, não me relacionei ninguém a olhos vistos. Sempre fui a solteira, a que ficaria pra “titia”. E a que gostava de estudar, ler e escrever excessivamente, ou pelos menos, ao que era conveniente a uma mulher de cidade interiorana. Fui criada em uma cidade cujos espaços de diversão eram: a igreja, a praça e o circo. Eu não gostava de rezar, de aglomerações e de palhaço – sempre os achei sem graça. Afastada e só, dentro da minha família mesmo. Nunca tive paciência para as minhas duas irmãs projetos de “maricotinha” e os meus dois irmãos, de “cowboyzinho”. Lacônica, quieta e sozinha, eu apenas me entendia com uma categoria de coisas no mundo: os livros. Foram eles que me ensinaram a subversão, a crítica, a indignação. Ainda bem que na cidadezinha havia uma biblioteca – com bom acervo, por sinal. Os clássicos da literatura brasileira e mundial habitavam carcomidos as suas prateleiras velhas, empoeiradas e solitárias. A minha rinite reclamava do cheiro de livro velho que tanto gosto. Madame Bovary e Ana Karênia eram inspirações. Ambas me mostravam que era possível pensar e agir diferente em uma sociedade conservadora. Por mais que tivesse problemas com a minha mãe, não concordasse com nada que ela pensasse ou dissesse, eu a admirava. Viúva cedo, meu pai morreu por conta de um acidente de carro, criou os filhos só, como costureira. Sempre foi altiva, briosa e autoritária. Não admitia conversas na mesa, a refeição era sagrada. Nem brigas, quem brigasse era severamente castigado, com toda a sorte de castigos – nem preciso dizer o quanto eu fui castigada. E muito menos que se questionasse uma ordem ou vontade sua – ela nem discutia, apenas olhava com um olhar inquisidor. Uma vez questionei por devíamos rezar tanto, ela apenas disse-me, secamente: “Agora vais rezar pra Deus te curar da surra que vou te dar menina insolente”. Eu tinha dez anos. E tive que rezar mesmo, porque levei uma surra de vassoura de açaí que demorou uma semana para estancar a dor. Nunca mais a questionei, ao menos verbalmente. Saí de casa porque ela queria me casar com um primo, um tal de Francisco, que trabalhava como escriturário no cartório da cidade. Quando ela veio me impor o destino, eu gritei-lhe na cara: “Enfia esse pretendente no cú, quem manda na minha vida sou eu”. Dali pra frente, era eu e a minha parca inteligência. Uma coisa que ela sempre me dizia, por conta da minha intempestividade lacônica: “Morgana, minha filha, aprenda uma coisa na vida: só tem honra quem tem dinheiro”. Nesse dia, eu mostrei-a que tinha honra e nem um pouco de medo dela, e que queria apenas que minha vontade e opinião fossem respeitadas. Fui morar na casa de uma tia na capital, a tia Anastácia, solteira, fanfarrona, hipocondríaca e advogada, e me formei jornalista. Moro só, com o Boris – meu gato laranja. E tenho um rolo com o Ivan – que trabalha comigo no jornal. Quando estava voltando do trabalho, recebo a ligação de Margarida, minha irmã mais velha, informando sobre o falecimento. Cheguei à cidade bem na hora do enterro. Meus irmãos pediram que eu fizesse um discurso em nome da família. Fui de curtas palavras, apenas disse: “Aqui jaz um tipo de pessoa rara hoje em dia: briosa, de caráter e palavra. E digo publicamente: mãe, admiro-te profundamente, porque te amar eu sempre de amei”. Uma coisa que lamento é nunca ter falado que a amava. Depois fui saber pelos meus irmãos que o dia que ela mais lamentava na vida foi o que saí de casa, e que se arrependia mortalmente. E que eu era a sua filha favorita, a mais parecida com ela. A sua imagem e semelhança. Chorei amargamente por saber disso. Quando voltei a minha vida normal, soube que estava grávida. É, ela me chamou: a condição feminina inexorável de ser mãe.

2 comentários:

Nairo Bentes; disse...

Fiquei com preguiça de vasculhar....
mas pelo acompanhamento fiel que faço a este blog, o único do estilo que leio, até pq é um dos mais atualizados, acredito que tenha sido o primeiro texto com o eu-lírico feminino, ficou bom. Interessante. Nunca vi um gato laranja, só em desenhos.

Ana Paula Campos disse...

TOMA-TE!!! hahhahahaha

Essa daí vai ser pior que mãe, quer apostar?? xD

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