domingo, 19 de setembro de 2010

Memória

“A coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão”. Sempre que leio esses últimos três versos do poema “Memória” do Drummond, eu me sinto reconfortado com o passado. Com as coisas findas. Com as coisas vividas. As coisas lindas que se foram e ficaram na lembrança. Confesso que sou demasiado saudosista e nostálgico com as lembranças. Quando elas vêm, eu paro, tomo um café e roço a barba. Pensativo, contemplativo, vislumbrando aquilo que foi. As lembranças têm um cheiro de café quentinho. O café quente, encorpado e saboroso que só a minha mãe sabe fazer. As reminiscências me deixam feliz e triste. E elas estão relacionadas ao que foi e ao que não foi. Há factos e não-factos. Ao real e imaginado. Encerrado em lugares, coisas, cheiros, cores, dias, tempo e pessoas. O cheiro do jambeiro e o gosto de purê de batata com picadinho que me levam a infância. Jogar futebol com o pessoal da escola. As brigas no jogo de botão – é, eu brigava quando o adversário não armava direito o goleiro, ou quando marcava um gol entrando goleiro e tudo no gol. Os poucos aniversários comemorados que tive, a minha mãe apenas fazia um bolo de macaxeira e suco de cupuaçu, chamava a família e uns poucos amigos. Isso era o bastante pra mim. Sentia que isso era o festejar o dia dos meus anos. As peraltices e más criações que renderam brigas e surras. O primeiro beijo, que foi rápido e especial, com cheirinho de alfazema – era o perfume dela. O cheiro da chuva no fim da tarde. Os fiapos de manga entre os dentes. A boca suja de açaí. A mão melada da pupunha saborosa feita na hora. O calor insuportável quando voltava da escola. O interesse pelas moças. O interesse delas por mim. As desilusões juvenis. O gosto por saber mais, de gostar de estudar. O gosto pelos livros. A predileção por História e Matemática. E depois, apenas pela História. E depois, ainda, pela Literatura. É, tive bons professores. As lembranças recentes, por conta de experiências indeléveis, são docemente tristes, e amargamente alegres. O carinho na barba que me deixou bobo. O abraço e os cabelos dela na minha face. O dia todo junto que pareceu tão pouco. A sua chatice e curiosidade que me encantavam. As viagens com os amigos. Os encontros. Os desencontros. As separações. Desentendimentos. Brigas. Confusões. Alegrias. Tristezas. Pesares. Conquistas. Avanços. Recuos. Equilíbrio. Solidão. Dúvida. Dor. Afagos. Distância. Silêncio. Braços, pernas, bocas e vontade. Mãos. Desilusão. Desprezo. Esquecimento. Sentimentos. Sono. Sonhos. A preocupação com o peso. As contas atrasadas. O cabelo por cortar, a barba por fazer. As lembranças vêm e vão. As lembranças me lembram o que disse Tom: “Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver”. Em outras palavras: viver a ventura de viver. Ou melhor, como escreveu Gabo: “a vida não é a que gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Foi o que fiz: recordei a eterna desventura/ventura de viver.

4 comentários:

Unknown disse...

Falas com tanta beleza das tuas lembranças que chego ate a sentir o proprio cheiro do café.=)
Porém,a lembranças precisam ser feitas e feitas..sempre... ^^
Adorei Felipov bjss

Dona Horta disse...

Já pode chorar?

Emocionei!

Bjos!

Anairamgui disse...

Encantada...

relembro agora nossos dias de "se conhecer"... nossas tardes de "Los hermanos", e principalmente da intimidade da casa compartilhada...

Juliana Brandão disse...

Identifiquei-me muitíssimo com o texto.

Te superaste, caro escritor!

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