Amanhece mais um
extraordinário dia em Belém do Pará.
Choveu bastante de madrugada.
Chuva forte
com rajadas de vento e água por toda a noite.
Todos os habitantes da cidade
foram atingidos. Ninguém ficou impune. As lambidas ora fortes ora macias da
chuva foram de igual impacto sobre os belenenses. Todavia, os efeitos foram
diferentes. A água que corria pelo asfalto e concreto não tem a mesma ação
sobre os moradores da cidade: de alguns acalenta o sono, de outros é a razão do
drama insone.
Alagamentos, ruas
inteiras sob a água.
A periferia da cidade contabiliza seus prejuízos, fogão,
geladeira, colchão, a dignidade vendida na última eleição: tudo embaixo da
água. Nos bairros centrais, algumas ruas cobertas d’água. Ao amanhecer apenas restam
a lama e a razão da dor de cabeça de seus moradores: sapatos sujos depois de
uma revigorante noite de sono.
Ocorreram assaltos,
latrocínios e mortes.
Pessoas beberam, se divertiram e voltaram para suas
casas. Outras apenas dormiram, aproveitando o frio da noite. Houve aquelas que
ficaram acordadas salvando eletrodomésticos, chorando a desgraça, pedindo a
Deus dias melhores. Estas pessoas assistiram à televisão, umas como
telespectadores, outras como notícias. A culpa é da chuva. Sempre culpa da
chuva. A natureza domina tudo e todos.
Rebeca Lemos acorda
atrasada.
É jornalista e trabalha no principal emissora de televisão da cidade.
Está feliz porque engravidou depois de anos de tratamento. O marido conseguiu
uma grande causa para defender. Rubens Carvalho é advogado e está feliz com
gravidez, sua amante também quer engravidar. Rebeca e Rubens, semana que vem, estão
de mudança para o apartamento novo. Só
uma coisa lhes preocupa agora: os sapatos sujos.
Chega ao prédio da
emissora.
Uma hora de atraso. Chuva, trânsito. Tinha desculpa. A pauta do
noticiário, mais uma vez, é a ação das chuvas na cidade. Pensa consigo que
sempre é a mesma coisa. Mas não era apenas isso. Aconteceu um grande crime no
Jurunas: uma chacina. Oito pessoas mortas. Executadas sumariamente. Briga entre
traficantes. Moradores haviam enviado para a redação imagens de celular do
confronto. A polícia entrou em contato com a emissora. Um grande furo de
reportagem. Dois repórteres e um cinegrafista foram designados para cobrir a
situação. Rebeca tinha que editar todas essas informações em notícias. Os
sapatos sujos era o que preocupava Rebeca.
Na sua mesa estavam
todas as informações em vídeos, textos e fotos.
Ficou nauseada ao ver tanta
violência. Otávio Barata, chefe da redação, ao vê-la, brilhou os olhos de
satisfação, chegou a hora de testá-la: seu batismo de fogo. Pesava sobre ele a
fama de ser muito exigente, rigoroso e severo. Rebeca sempre editava as
notícias mais amenas, relacionadas a variedades, direito do consumidor,
assuntos de saúde, ou as premeditadas consequências do caos urbano depois da
chuva daquela madrugada. As notícias traduziam o seu desconforto em ter os
sapatos sujos. Naquele dia a edição ia ser diferente. Otávio entregou em suas
mãos a tarefa de editar a chacina do Jurunas. Com uma recomendação: dê aos
porcos o farelo que eles querem comer. Ela sabia o que ele queria. Ela foi
preparar o farelo.
O fato ficou conhecido
como “A chacina dos porcos”.
Todos os telejornais da emissora veicularam a
notícia com a tarja de “exclusividade”. Rebeca foi quem cunhou o nome para a
chacina. As imagens e depoimentos convergiam para um verdadeiro relato de
carnificina. Todos os oito homens mortos estavam visivelmente acima do peso e
foram assassinados a tiros e golpes de facão. Todos os corpos foram
esquartejados e os pedaços foram jogados por toda a extensão da passagem onde
ficava a boca de fumo. Dos oito, três eram menores de idade. As imagens
lembravam muito a carne e o sangue de um matadouro. Rebeca arrumou textos e
imagens como um espetáculo da carnificina necessário imprescindível para a
manutenção da ordem e paz social. “Bandido bom é bandido morto, que todos esses
porcos morram” – ela pensava. Contudo, o que há mais incomodava eram os sapatos
sujos. Aquilo era inadmissível: sapatos tão caros e sujos de lama.
No programa “O porrete
do povo”, a notícia foi saboreada como um manjar.
“Exclusivo! Temos
notícias inéditas! Totalmente exclusivas da Chacina dos Porcos! Nesta madrugada
de chuvas, aconteceu um assassinato brutal no bairro do Jurunas. Oito homens
foram encontrados mortos num beco onde tinha uma boca de fumo. Mortos a tiros e
golpes de facão! Todos os corpos foram esquartejados! Cortados em picadinho! E
espalhados por todo o beco! A polícia acredita que seja briga entre traficantes
pelo controle do tráfico no bairro e que os requintes de crueldade seja para
dar exemplo e deixar claro quem manda. Estas observações foram feitas pelo
investigador Pereira, do setor de narcóticos da Polícia Militar, mas o
inquérito policial ainda está em andamento. Meu povo, eu quero é que eles se
matem mesmo! O mal por si só se corrói! Eu quero que eles se matem
devagarinho!! Eu quero imagens!! Olhem só!! Pernas e braços jogados na
sarjeta!! Sangue, muito sangue!! Sangue e lama!! Parece a imagem de um
matadouro de porcos!! Eu quero que todos eles sejam sacrificados mesmo!! Eu
quero todos eles mortos!! Olhem as imagens!! Porcos, eu quero todos esses
porcos mortos e enterrados!! Vou ter um prazer de noticiar mais morte desses
marginais, vagabundos, meliantes!! Esses enviados do demo para destruir as
famílias!! Você mãe que tem filho viciado e vive esse inferno dentro de casa,
fique feliz!! Você cidadão de bem que paga todos os seus impostos e que anda
dentro da lei, fique feliz!! Você policial que arrisca todos os dias a sua vida
para garantir a paz e a segurança de toda a sociedade de bem, fique feliz!!
Toda a sociedade, fique feliz, são menos vagabundos fazendo mal e desviando
nossas crianças e jovens do caminho do bem!! Eu espero com fé em Deus que todos
eles se matem, um por um, e que possamos viver em paz, sem violência e sem
drogas!! É a justiça divina sendo feita!!”
Rebeca, promovida, agora edita as notícias da pauta
policial. Ela prepara o farelo para os porcos comerem. Porcos com televisão de
plasma. Porcos com smartphone. Porcos que gostam de UFC. Porcos que gostam de
ver outros porcos apanhando, sofrendo, morrendo. Porcos gordos e satisfeitos na
frente da televisão. Porcos que choram suas perdas no alagamento. Receba faz
com que todos vejam a violência com o mesmo incômodo de seus sapatos sujos.
Afinal, o que importa é o farelo.
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