quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O espelho




Fernanda olha o espelho e vê uma mulher bonita. É apenas isso que ela vê. Mais um exemplar plasticamente bonitinho, no catálogo dos milhões descartados e milhões lançados todos os dias, produzido em massa, rigorosamente iguais, modelos testados e aprovados, com gostos, sentimentos, gestos, atitudes similarmente domesticados pelo consumo desta intempestiva espécie alguma vez conhecida por humanidade. Ela está vestida, maquiada, penteada, bonita. Olha melhor, vestido apertado, salto plataforma e percebe que a maquiagem precisa ser retocada, toda borrada pelo calor, a roupa não combina com o batom, a sombra e os brincos, a chapinha feita na pressa não alisou todas as mechas californianas. Ela não está arrasando, ela está uó. Maninha, hoje não é meu dia, valha-me nazica.

Fica com raiva, frustrada, nervosa. Vai ao banheiro e limpa a maquiagem e tira a roupa. Liga para o namorado e diz que não quer sair. Desliga com raiva. Ai, que merda, estou gorda e estressada. Olha novamente para o espelho, não está mais bonita, gata, gostosa. Eras que merda de vida. Observa o seu rosto natural, seu busto sem enchimento e ligas de empinamento. Estou embarangando, uó isso, uó. Olha para o espelho e vê uma pessoa. Nua, despida, pelada. Sem maquiagens, sem roupa, sem artifícios, sem beleza. Sente-se desamparada, desesperada, desorientada. Olha fixamente, procurando. Repara em todas as nuances, procurando. Nos seus olhos, boca, nariz, cabelos, pescoço, peitos. Olha atentamente, procurando. Não gosta do que observa.  Procura o que está errado. Égua, pedi pra ser feia e abusei, vamos combinar.

É apenas Fernanda. Ninguém gosta da Fernanda. Esta Fernanda na frente do espelho, natural, nem mesmo a Fernanda gosta. As pessoas gostam da Fernanda produzida, montada, arrumada, maquiada, bonita, poderosa, arrasando. Até mesmo a Fernanda gosta. A Fernanda, como qualquer outro exemplar da espécie, tem desejos simples como casar com um marido lindo, rico e gostoso e ter filhos lindos, saudáveis e bem-sucedidos e morar em uma casa com jardim e cercadinho branco e ter um cachorro chamado mascote e ser feliz para sempre e só morrer bem velhinha ou quando Deus quiser, quer ser aceita com todos os seus defeitos, amada de maneira incondicional e eterna e absoluta, aprovada pelos juízos alheios cujo amor quer todo para si, afirmar sua vaidade cotidiana de cima do salto, demonstrar suas qualidades aprovadas pelo Inmetro, reconhecida pela inteligência de ameba, caráter, honestidade de raposa, criticada pela originalidade da opinião lida nas manchetes da Veja, independência de pensamento das amigas, discernimento de julgamento do ouvi dizer, e todos os demais atributos que ela lê no horóscopo e nos livros que ensinam a ser feliz e ver a vida positivamente, cujo autor preferido é Augusto Cury. Não quero muito, quero ser feliz como todo mundo, é pedir demais, Deus?

A Fernanda que agora a Fernanda olha no espelho que é uma pessoa nua, sem graça, acima do peso, cheia de imperfeições no rosto, causadas pelas espinhas, frágil, vulnerável, indefesa que as pessoas não gostam por ser Fernanda, é a Fernanda que existe, é a Fernanda que ela tem, a única Fernanda que lhe pertence. Ainda bem que não saí hoje, ninguém merece me ver assim, nem mesmo o Fábio, se ele não gostou, paciência, maninho, paciência. Ela não quer ser a Fernanda revelada impiedosamente por mim. Ela quer ser a Fernanda refletida pela sociedade. Ela continua olhando aquela figura desconhecida, desprezada, escondida, poucas vezes vindo à tona, chegando mesmo a estranhar. Estranhamento. Olhou mais fixamente, curiosa, procurando.

Lacônico por definição, raramente me pronuncio, me restrinjo a realizar plenamente a minha função, sou apenas uma invenção produzida pelo intelecto humano para refletir a exterioridade dos homens, e me arrogo dizer que tenho feito isso com alguma competência, e na mesma proporção não me escuso de afirmar para que a justiça seja plenamente realizada que qualquer inabilidade é culpa exclusiva do criador e sempre recaí sobre a criatura. Malgrado as suas intenções narcísicas, arrisco conceber que eu seja apenas um instrumento de elucidação da vaidade, da pequeneza, da ostentação, da arrogância humana que na maioria das vezes é vista como uma deslumbrante beleza. Testemunho com o passar dos séculos que o homem e sua casca, sua carapaça, suas máscaras mudaram de forma diminuta com o transcorrer do tempo, em essência, parte considerável das imagens que tenho refletido são rigorosamente similares. O descompasso reside apenas na distinção de época em época, nas faculdades da engenhosidade humana que tende sempre a mudança, todavia a minha observação arguta, severa e permanente expõe que continuam sendo universalmente os mesmos, compartilhando igualmente medos, alegrias, vitórias e derrotas. Contudo, algumas raras vezes, estes homens quando se postam a minha frente, para as suas corriqueiras consultas a vaidade, aparências e futilidades que tanto valorizam em suas vidas ordinárias, me comporto tal qual um oráculo revelador das verdades inconfessáveis e desconhecidas, conseguem ver o que as suas aparências opulentas e veneráveis ocultam para conviver hipocritamente em sociedade: criaturas capazes do sublime e do grotesco.

Aquele era um lado seu que não conhecia. Não reparara, não sabia. Olhava mais. O cabelo desarrumado. O que havia de errado. Ela olhava mais. Seus olhos rotos, sem rímel, sem sombra, sem pintura. Ela viu seus olhos brilharem ao serem reparados, como se fosse uma criança chamando atenção com suas travessuras, esperneando, gritando.

Espantou-se, inquietou-se, modificou-se algo no seu íntimo. Esfregou os olhos para ver melhor, com nitidez e clareza, os detalhes tácitos da figura humana diante dos seus olhos, substituindo o espectro vestido pelas estilistas, pensado pela mídia e maquiado pela sociedade protetora dos animais, vulgarmente chamada de indústria cosmética.  Havia uma impressão repentina, uma sensação, um arrepio, alguma coisa estava acontecendo, não havia palavras para dizer ou definir os sentimentos que moviam suas idéias, porém estava alterando de maneira irreversível a sua forma de ver as coisas, a imagem, o conceito, a opinião que tinha de si mesmo ao olhar a sua figura subterrânea, soterrada, submersa, que a partir da fresta refletida por mim, veio a lume clareando a escuridão das águas abissais, o brilho da consciência de si e do mundo que acossa todos os homens. Tudo o que havia sido esquecido, emergia forte como uma torrente de lembranças.

Os sinais da catapora, que eram dois, um na testa e outra no queixo, toda vez reclamava deles, escondendo-os com base, corretivo, argamassas cosméticas, lembrou-se dos desenhos que assistiu quando precisou ir para a escola naqueles dias de doença, tomando achocolatado na mamadeira a manhã toda, os mimos da mãe, o pão de queijo quentinho, como gostava de pão de queijo, da mamadeira e do achocolatado. Que saudade. Como era bom ficar doente, sem escola, chocolate, pão de queijo, mimos da mamãe. Que saudade do tempo que não precisava se fingir bonita para ser querida.  Que saudade de ser criança feia, curubenta, catarrenta, desarrumada e amada.

Ficou feliz em lembrar. Arrumou-se melhor na cadeira, e viu a cicatriz que tinha no ombro. Que era mais funda, agora apenas um risco. Do que havia sido mesmo. Ah, lembrei: daquela vez, na fazenda do tio Oswaldo, quando fui ver meus primos ordenhando as vacas e um bezerro veio correndo na minha direção e com medo saindo correndo e acabei ralando na cerca de arame farpado. Nunca mais voltei. Eu gostava tanto de ir lá, tomar leite fresco, explorar o mato, sentir o ar fresco das árvores, colher flores e pegar as borboletas distraídas, sentar na beira do córrego que atravessava a fazenda, sentir a água fria passando pelos meus pés e ver o que era uma vida tranquila. A sobrancelha cirurgicamente tirada era o lugar onde o meu pai sempre fazia carinho quando era apenas sua pequena. Ele sempre insistia de voltar à fazenda, e eu sempre recusava por conta do evento do bezerro. Quanta idiotice se faz na vida. Quanta idiotice.

As orelhas furadas. A dor do furo, o primeiro brinco. Foi a primeira vez que me senti bonita. Não sabia naquele momento, mas talvez tenha se justificado na minha cabeça, que ser bonita era necessário sacrifício, dor, desconforto, aflição. Sempre valia a pena, me parecia, a fome das dietas, as dores nos músculos na academia sem resultados visíveis, o queimar e puxar e defumar cabelos na chapinha, os calos do salto, nada é fácil na vida, inclusive ser bonita. Coisa de mulher gata, mana, é assim, não pode embarangar, relaxa – diziam as amigas. Eu endossava, queria ser gata, desejada, na vibe da galera. Quanta idiotice. A boca que sempre achou feia lhe pareceu bonita porque incrivelmente não estava com batom, e ela gostou do distanciamento que provocava ter os lábios limpos, na cor natural. Estava sentindo estranhamente bem consigo como jamais havia sentido antes, era aquela mesma sensação de tomar banho depois do calor intenso, limpar-se depois de muito sujo, a sensação de tranquilidade das águas geladas nos seus pés.

Os ombros, o pescoço lhe parecera sempre pouco atraentes, nunca visíveis, nunca sedutores, nunca notados, embora olhando bem, realmente era necessário que eles fossem lascivos. Olhou melhor, riu, dando conta da besteira que pensava. Pensava. Por qual razão pensava assim. Parou absorta. Qual Fernanda era aquela. Diga-me Fernanda. Por que havia se tornado uma boneca. Por que havia cedido tão facilmente. Tudo fica claro. De frente para o espelho. Para aparência dos fatos que haviam moldado a sua vida até aquele momento. Superficial, raso, pequeno. Mesquinho, egoísta, tacanho. Falso, profundamente falso. Relaxa, gata, é assim mesmo, relaxa e arrasa. Quanta idiotice.

Foi impactando-se com a verdade revelada por sua imagem no espelho. Óbvio. Na sua cara, todos os dias. Quanta tolice. Uma indignação consigo. A raiva de sentir-se enganada. Olhou-se novamente. Fixo. Contemplativo. Estético. Perscrutando o belo. Via beleza. A beleza que lhe pertencia, a sua beleza que era efêmera. Ficou estupefata. A ignorância que lhe travava o olhar, as trevas que não lhe faziam ver a simplicidade do seu ser, da naturalidade de ser Fernanda, aquela que escondia no brilho do seu olhar.

Seus olhos encerravam toda a sua atenção, ele esperou muito por esse momento, no qual poderia falar livremente, com a consciência de ser ouvido e entendido, seus olhos diziam que ela agora enxergava a verdade, límpida, clara e simples verdade, a verdade dita por seus olhos, a verdade sem máscara, porém uma verdade invertida por ser imagem do espelho, caberia agora colocá-la sobre os próprios pés e trilhar o singular caminho de Fernanda. Mais uma criatura consciente da sua condição sublime e grotesca.

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