Fernanda olha o espelho
e vê uma mulher bonita. É apenas isso que ela vê. Mais um exemplar
plasticamente bonitinho, no catálogo dos milhões descartados e milhões lançados
todos os dias, produzido em massa, rigorosamente iguais, modelos testados e
aprovados, com gostos, sentimentos, gestos, atitudes similarmente domesticados
pelo consumo desta intempestiva espécie alguma vez conhecida por humanidade. Ela
está vestida, maquiada, penteada, bonita. Olha melhor, vestido apertado, salto
plataforma e percebe que a maquiagem precisa ser retocada, toda borrada pelo
calor, a roupa não combina com o batom, a sombra e os brincos, a chapinha feita
na pressa não alisou todas as mechas californianas. Ela não está arrasando, ela
está uó. Maninha, hoje não é meu dia, valha-me nazica.
Fica com raiva,
frustrada, nervosa. Vai ao banheiro e limpa a maquiagem e tira a roupa. Liga
para o namorado e diz que não quer sair. Desliga com raiva. Ai, que merda,
estou gorda e estressada. Olha novamente para o espelho, não está mais bonita,
gata, gostosa. Eras que merda de vida. Observa o seu rosto natural, seu busto
sem enchimento e ligas de empinamento. Estou embarangando, uó isso, uó. Olha para o espelho e
vê uma pessoa. Nua, despida, pelada. Sem maquiagens, sem roupa, sem artifícios,
sem beleza. Sente-se desamparada, desesperada, desorientada. Olha fixamente,
procurando. Repara em todas as nuances, procurando. Nos seus olhos, boca,
nariz, cabelos, pescoço, peitos. Olha atentamente, procurando. Não gosta do que
observa. Procura o que está errado. Égua,
pedi pra ser feia e abusei, vamos combinar.
É apenas Fernanda.
Ninguém gosta da Fernanda. Esta Fernanda na frente do espelho, natural, nem
mesmo a Fernanda gosta. As pessoas gostam da Fernanda produzida, montada,
arrumada, maquiada, bonita, poderosa, arrasando. Até mesmo a Fernanda gosta. A
Fernanda, como qualquer outro exemplar da espécie, tem desejos simples como
casar com um marido lindo, rico e gostoso e ter filhos lindos, saudáveis e
bem-sucedidos e morar em uma casa com jardim e cercadinho branco e ter um
cachorro chamado mascote e ser feliz para sempre e só morrer bem velhinha ou
quando Deus quiser, quer ser aceita com todos os seus defeitos, amada de
maneira incondicional e eterna e absoluta, aprovada pelos juízos alheios cujo
amor quer todo para si, afirmar sua vaidade cotidiana de cima do salto,
demonstrar suas qualidades aprovadas pelo Inmetro, reconhecida pela
inteligência de ameba, caráter, honestidade de raposa, criticada pela
originalidade da opinião lida nas manchetes da Veja, independência de
pensamento das amigas, discernimento de julgamento do ouvi dizer, e todos os
demais atributos que ela lê no horóscopo e nos livros que ensinam a ser feliz e
ver a vida positivamente, cujo autor preferido é Augusto Cury. Não quero muito,
quero ser feliz como todo mundo, é pedir demais, Deus?
A Fernanda que agora a
Fernanda olha no espelho que é uma pessoa nua, sem graça, acima do peso, cheia
de imperfeições no rosto, causadas pelas espinhas, frágil, vulnerável, indefesa
que as pessoas não gostam por ser Fernanda, é a Fernanda que existe, é a
Fernanda que ela tem, a única Fernanda que lhe pertence. Ainda bem que não saí
hoje, ninguém merece me ver assim, nem mesmo o Fábio, se ele não gostou,
paciência, maninho, paciência. Ela não quer ser a Fernanda revelada
impiedosamente por mim. Ela quer ser a Fernanda refletida pela sociedade. Ela
continua olhando aquela figura desconhecida, desprezada, escondida, poucas
vezes vindo à tona, chegando mesmo a estranhar. Estranhamento. Olhou mais fixamente,
curiosa, procurando.
Lacônico por definição,
raramente me pronuncio, me restrinjo a realizar plenamente a minha função, sou
apenas uma invenção produzida pelo intelecto humano para refletir a exterioridade
dos homens, e me arrogo dizer que tenho feito isso com alguma competência, e na
mesma proporção não me escuso de afirmar para que a justiça seja plenamente
realizada que qualquer inabilidade é culpa exclusiva do criador e sempre recaí
sobre a criatura. Malgrado as suas intenções narcísicas, arrisco conceber que
eu seja apenas um instrumento de elucidação da vaidade, da pequeneza, da
ostentação, da arrogância humana que na maioria das vezes é vista como uma
deslumbrante beleza. Testemunho com o passar dos séculos que o homem e sua
casca, sua carapaça, suas máscaras mudaram de forma diminuta com o transcorrer
do tempo, em essência, parte considerável das imagens que tenho refletido são
rigorosamente similares. O descompasso reside apenas na distinção de época em
época, nas faculdades da engenhosidade humana que tende sempre a mudança,
todavia a minha observação arguta, severa e permanente expõe que continuam
sendo universalmente os mesmos, compartilhando igualmente medos, alegrias,
vitórias e derrotas. Contudo, algumas raras vezes, estes homens quando se
postam a minha frente, para as suas corriqueiras consultas a vaidade,
aparências e futilidades que tanto valorizam em suas vidas ordinárias, me
comporto tal qual um oráculo revelador das verdades inconfessáveis e
desconhecidas, conseguem ver o que as suas aparências opulentas e veneráveis ocultam
para conviver hipocritamente em sociedade: criaturas capazes do sublime e do
grotesco.
Aquele era um lado seu
que não conhecia. Não reparara, não sabia. Olhava mais. O cabelo desarrumado. O
que havia de errado. Ela olhava mais. Seus olhos rotos, sem rímel, sem sombra,
sem pintura. Ela viu seus olhos brilharem ao serem reparados, como se fosse uma
criança chamando atenção com suas travessuras, esperneando, gritando.
Espantou-se,
inquietou-se, modificou-se algo no seu íntimo. Esfregou os olhos para ver
melhor, com nitidez e clareza, os detalhes tácitos da figura humana diante dos
seus olhos, substituindo o espectro vestido pelas estilistas, pensado pela
mídia e maquiado pela sociedade protetora dos animais, vulgarmente chamada de indústria
cosmética. Havia uma impressão
repentina, uma sensação, um arrepio, alguma coisa estava acontecendo, não havia
palavras para dizer ou definir os sentimentos que moviam suas idéias, porém
estava alterando de maneira irreversível a sua forma de ver as coisas, a
imagem, o conceito, a opinião que tinha de si mesmo ao olhar a sua figura
subterrânea, soterrada, submersa, que a partir da fresta refletida por mim,
veio a lume clareando a escuridão das águas abissais, o brilho da consciência
de si e do mundo que acossa todos os homens. Tudo o que havia sido esquecido,
emergia forte como uma torrente de lembranças.
Os sinais da catapora,
que eram dois, um na testa e outra no queixo, toda vez reclamava deles,
escondendo-os com base, corretivo, argamassas cosméticas, lembrou-se dos
desenhos que assistiu quando precisou ir para a escola naqueles dias de doença,
tomando achocolatado na mamadeira a manhã toda, os mimos da mãe, o pão de
queijo quentinho, como gostava de pão de queijo, da mamadeira e do
achocolatado. Que saudade. Como era bom ficar doente, sem escola, chocolate,
pão de queijo, mimos da mamãe. Que saudade do tempo que não precisava se fingir
bonita para ser querida. Que saudade de
ser criança feia, curubenta, catarrenta, desarrumada e amada.
Ficou feliz em lembrar.
Arrumou-se melhor na cadeira, e viu a cicatriz que tinha no ombro. Que era mais
funda, agora apenas um risco. Do que havia sido mesmo. Ah, lembrei: daquela
vez, na fazenda do tio Oswaldo, quando fui ver meus primos ordenhando as vacas
e um bezerro veio correndo na minha direção e com medo saindo correndo e acabei
ralando na cerca de arame farpado. Nunca mais voltei. Eu gostava tanto de ir
lá, tomar leite fresco, explorar o mato, sentir o ar fresco das árvores, colher
flores e pegar as borboletas distraídas, sentar na beira do córrego que
atravessava a fazenda, sentir a água fria passando pelos meus pés e ver o que
era uma vida tranquila. A sobrancelha cirurgicamente tirada era o lugar onde o
meu pai sempre fazia carinho quando era apenas sua pequena. Ele sempre insistia
de voltar à fazenda, e eu sempre recusava por conta do evento do bezerro.
Quanta idiotice se faz na vida. Quanta idiotice.
As orelhas furadas. A
dor do furo, o primeiro brinco. Foi a primeira vez que me senti bonita. Não
sabia naquele momento, mas talvez tenha se justificado na minha cabeça, que ser
bonita era necessário sacrifício, dor, desconforto, aflição. Sempre valia a
pena, me parecia, a fome das dietas, as dores nos músculos na academia sem
resultados visíveis, o queimar e puxar e defumar cabelos na chapinha, os calos
do salto, nada é fácil na vida, inclusive ser bonita. Coisa de mulher gata,
mana, é assim, não pode embarangar, relaxa – diziam as amigas. Eu endossava,
queria ser gata, desejada, na vibe da galera. Quanta idiotice. A boca que
sempre achou feia lhe pareceu bonita porque incrivelmente não estava com batom,
e ela gostou do distanciamento que provocava ter os lábios limpos, na cor
natural. Estava sentindo estranhamente bem consigo como jamais havia sentido
antes, era aquela mesma sensação de tomar banho depois do calor intenso,
limpar-se depois de muito sujo, a sensação de tranquilidade das águas geladas
nos seus pés.
Os ombros, o pescoço
lhe parecera sempre pouco atraentes, nunca visíveis, nunca sedutores, nunca
notados, embora olhando bem, realmente era necessário que eles fossem lascivos.
Olhou melhor, riu, dando conta da besteira que pensava. Pensava. Por qual razão
pensava assim. Parou absorta. Qual Fernanda era aquela. Diga-me Fernanda. Por
que havia se tornado uma boneca. Por que havia cedido tão facilmente. Tudo fica
claro. De frente para o espelho. Para aparência dos fatos que haviam moldado a
sua vida até aquele momento. Superficial, raso, pequeno. Mesquinho, egoísta,
tacanho. Falso, profundamente falso. Relaxa, gata, é assim mesmo, relaxa e
arrasa. Quanta idiotice.
Foi impactando-se com a
verdade revelada por sua imagem no espelho. Óbvio. Na sua cara, todos os dias.
Quanta tolice. Uma indignação consigo. A raiva de sentir-se enganada. Olhou-se
novamente. Fixo. Contemplativo. Estético. Perscrutando o belo. Via beleza. A
beleza que lhe pertencia, a sua beleza que era efêmera. Ficou estupefata. A
ignorância que lhe travava o olhar, as trevas que não lhe faziam ver a
simplicidade do seu ser, da naturalidade de ser Fernanda, aquela que escondia
no brilho do seu olhar.
Seus olhos encerravam
toda a sua atenção, ele esperou muito por esse momento, no qual poderia falar
livremente, com a consciência de ser ouvido e entendido, seus olhos diziam que
ela agora enxergava a verdade, límpida, clara e simples verdade, a verdade dita
por seus olhos, a verdade sem máscara, porém uma verdade invertida por ser
imagem do espelho, caberia agora colocá-la sobre os próprios pés e trilhar o singular
caminho de Fernanda. Mais uma criatura consciente da sua condição sublime e
grotesca.
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