Vivo na linha de tiro.
Sou um alvo quando erro pelas ruas
da cidade.
Há dois anos, andava pelas ruas de
Belém, Padre Eutíquio, Mundurucus, Serzedelo Corrêa, não lembro bem, pouco
importava, havia bebido algumas cervejas. O mesmo papo de sempre, cerveja com
os amigos, sexta, música, cigarros e nada de sexo. Nada da porra do sexo.
Desatento, derrotado, humilhado.
A cerveja me fode muito quando
estou triste, não estava bêbado, estava naquele estado alterado de consciência
que me faz pensar melhor, ia ponderando que ninguém é meu amigo e que não ia
mais beber, o nariz virado em direção de casa, os passos iam apressados,
calçadas mais escuras, portões, portas, grades fechadas, rua desabitada de
carros e pessoas.
Um homem e um casal se aproximam.
Percebi suas presenças, um
espectro, olhar periférico, atenção, àquela hora da noite, todos são suspeitos,
até eu. Angústias, medos, alarmes corporificam nas sombras, as notícias de
mortes estúpidas nos jornais vem à mente, a imaginação prolifera fantasmas
reais, as experiências de outros assaltos guiam o pensamento, que merda de vida
escrota entalado na garganta.
O casal virou na esquina.
Mulher bonita, provavelmente me
apaixonaria por ela, beberíamos juntos, me emprestaria livros do Hemingway,
filmes do Almodóvar, conversaríamos sobre literatura latino-americana e
jogaríamos inúmeras partidas de domino, ela tem cara de quem gosta de domino,
depois de algum tempo me trocaria e eu sofreria como de costume, iria beber e
voltar bêbado andando para casa, cara de sorte ao seu lado, deve ser um rapaz
bacana, poderia ser meu chapa, discutirmos sobre música, cinema e política e jogaríamos
futebol no final de semana, queria ser um casal naquela hora, carinhos, beijos,
compartilhar a vida, a solidão enferrujava o meu coração.
Restou o homem.
Observava, calculando, mensurava
cada passo, cada olhar, cada medo, tinha consciência de caçador, do terror que
imprimia à presa, sem pressa, com calma escolhia a melhor hora para dar o bote,
fumava um cigarro, apenas via aquela centelha ondulando pelo escuro, acredito
que ele esperava acabá-lo, uma esquina mais escura, abordagem, expropriar,
fugir, dizendo baixo: não corre, não grita, senão te mato, filho da puta.
Portava de valor, celular, carteira,
bota favorita no pé, identidade, título de eleitor, certificado de reservista,
cartão de crédito, dez reais, algumas contas, algumas moedas, a minha
descartável vida na mira do revolver dentro do meu bolso junto com umas
embalagens de menta e um cigarro que esqueci de fumar.
Égua, onde tem um táxi nessas
horas, nada, nenhuma porra de nada para te socorrer, um cordeiro a ser imolado,
que merda, nada te ajuda nessas horas, o coração se destroça no peito, os
pulmões ventilam desesperados esperando a ação, susto, calafrio, suor, calor, um
táxi, apenas um táxi.
A esquina.
Olhar periférico, cadê ele, sumiu,
cadê o filho da puta, para onde ele foi, suor na testa, calor, desespero ou
alívio, nem sei o que sentia.
Rapidamente fiquei sóbrio com toda
essa agitação.
Alguns carros passaram, tristes e
calados, as luzes das lanternas iluminam a minha tranquilidade, baixei a
guarda, respirei mais calmo, tenho que chegar em casa, estou morrendo de fome,
vou comer aquele macarrão do almoço.
Perdeu playboy – o cano da arma na
minha nuca - pensou que tinha escapado, eu só me escondi, passa tudo, celular,
carteira – a mão revistando – o que fazer, ele ia me matar, nada de valor,
tinha que fazer alguma coisa rápida, inesperada – eu não tenho mais nada de
valor, só tenho isso - ele se abaixou para conferir os bolsos laterais da
bermuda, era a hora, ele baixou a guarda – bati com nuca no cano da arma, ela
caiu, ele ficou surpreso, desarmado na minha frente.
Uma fúria, uma cólera, um furor.
Soco, chute, joelhada, murro, porrada, porrada, porrada, sangue, sangue muito
sangue.
Ele deitado no chão.
Pisava na cara, sola da bota no
olho, chutava a boca, os lábios dilacerados, dentes saindo a cada chute,
costelas quebradas, braço fraturado, o outro tentando se defender inutilmente,
dois dedos meus quebrados na mão direita, eu cuspia sangue, talvez uma ou duas
costelas quebradas, dificuldade de respirar, meu olho doía, até o desfecho:
minha bota fez sexo com suas bolas, rapidinha de um chute.
Dez minutos depois, cansado,
ofegante, totalmente moído daquela briga primitiva, tive consciência do poder,
da justiça, da honestidade de minha bota esquerda e suas vítimas: sangue,
costelas, dentes, sexo.
(Felipov)
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