segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Bota esquerda






Vivo na linha de tiro.

Sou um alvo quando erro pelas ruas da cidade.

Há dois anos, andava pelas ruas de Belém, Padre Eutíquio, Mundurucus, Serzedelo Corrêa, não lembro bem, pouco importava, havia bebido algumas cervejas. O mesmo papo de sempre, cerveja com os amigos, sexta, música, cigarros e nada de sexo. Nada da porra do sexo.

Desatento, derrotado, humilhado.

A cerveja me fode muito quando estou triste, não estava bêbado, estava naquele estado alterado de consciência que me faz pensar melhor, ia ponderando que ninguém é meu amigo e que não ia mais beber, o nariz virado em direção de casa, os passos iam apressados, calçadas mais escuras, portões, portas, grades fechadas, rua desabitada de carros e pessoas.

Um homem e um casal se aproximam.

Percebi suas presenças, um espectro, olhar periférico, atenção, àquela hora da noite, todos são suspeitos, até eu. Angústias, medos, alarmes corporificam nas sombras, as notícias de mortes estúpidas nos jornais vem à mente, a imaginação prolifera fantasmas reais, as experiências de outros assaltos guiam o pensamento, que merda de vida escrota entalado na garganta.

O casal virou na esquina.

Mulher bonita, provavelmente me apaixonaria por ela, beberíamos juntos, me emprestaria livros do Hemingway, filmes do Almodóvar, conversaríamos sobre literatura latino-americana e jogaríamos inúmeras partidas de domino, ela tem cara de quem gosta de domino, depois de algum tempo me trocaria e eu sofreria como de costume, iria beber e voltar bêbado andando para casa, cara de sorte ao seu lado, deve ser um rapaz bacana, poderia ser meu chapa, discutirmos sobre música, cinema e política e jogaríamos futebol no final de semana, queria ser um casal naquela hora, carinhos, beijos, compartilhar a vida, a solidão enferrujava o meu coração.

Restou o homem.

Observava, calculando, mensurava cada passo, cada olhar, cada medo, tinha consciência de caçador, do terror que imprimia à presa, sem pressa, com calma escolhia a melhor hora para dar o bote, fumava um cigarro, apenas via aquela centelha ondulando pelo escuro, acredito que ele esperava acabá-lo, uma esquina mais escura, abordagem, expropriar, fugir, dizendo baixo: não corre, não grita, senão te mato, filho da puta.

Portava de valor, celular, carteira, bota favorita no pé, identidade, título de eleitor, certificado de reservista, cartão de crédito, dez reais, algumas contas, algumas moedas, a minha descartável vida na mira do revolver dentro do meu bolso junto com umas embalagens de menta e um cigarro que esqueci de fumar.
Égua, onde tem um táxi nessas horas, nada, nenhuma porra de nada para te socorrer, um cordeiro a ser imolado, que merda, nada te ajuda nessas horas, o coração se destroça no peito, os pulmões ventilam desesperados esperando a ação, susto, calafrio, suor, calor, um táxi, apenas um táxi.

A esquina.

Olhar periférico, cadê ele, sumiu, cadê o filho da puta, para onde ele foi, suor na testa, calor, desespero ou alívio, nem sei o que sentia.

Rapidamente fiquei sóbrio com toda essa agitação.

Alguns carros passaram, tristes e calados, as luzes das lanternas iluminam a minha tranquilidade, baixei a guarda, respirei mais calmo, tenho que chegar em casa, estou morrendo de fome, vou comer aquele macarrão do almoço.

Perdeu playboy – o cano da arma na minha nuca - pensou que tinha escapado, eu só me escondi, passa tudo, celular, carteira – a mão revistando – o que fazer, ele ia me matar, nada de valor, tinha que fazer alguma coisa rápida, inesperada – eu não tenho mais nada de valor, só tenho isso - ele se abaixou para conferir os bolsos laterais da bermuda, era a hora, ele baixou a guarda – bati com nuca no cano da arma, ela caiu, ele ficou surpreso, desarmado na minha frente.

Uma fúria, uma cólera, um furor. Soco, chute, joelhada, murro, porrada, porrada, porrada, sangue, sangue muito sangue.
Ele deitado no chão.

Pisava na cara, sola da bota no olho, chutava a boca, os lábios dilacerados, dentes saindo a cada chute, costelas quebradas, braço fraturado, o outro tentando se defender inutilmente, dois dedos meus quebrados na mão direita, eu cuspia sangue, talvez uma ou duas costelas quebradas, dificuldade de respirar, meu olho doía, até o desfecho: minha bota fez sexo com suas bolas, rapidinha de um chute.

Dez minutos depois, cansado, ofegante, totalmente moído daquela briga primitiva, tive consciência do poder, da justiça, da honestidade de minha bota esquerda e suas vítimas: sangue, costelas, dentes, sexo. 

(Felipov)

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