terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sepúlveda






Senil, velhice carcomida, meio corcunda, gesticular nervoso ao falar, empostar de voz, retórica de falar merda com convicção, voz grossa de tenor, rabugento, chatice atávica, um ralo cavanhaque, bigode amarelado pelos cigarros fumados, impávida calvície, cor da tez branca encardida, olhos azuis, sorriso triste e resignado, cigarro aceso sempre entre os dedos amarelados pela nicotina acumula de uma vida, copo de cachaça ao lado, fiel e inseparável companheiro, algumas culpas, sempre há culpas, remorsos, remorsos de homem honesto e sincero consigo mesmo, cansaço, o cansaço adquirido pelas inúmeras responsabilidades e obrigações que fizeram ser o que era: um homem amado, admirado, temido, odiado, invejado. A família, o trabalho, a devassidão, a boêmia, e muitas coisas inacabadas no decorrer da vida, Sepúlveda estava fenecendo.


Vida dura, cheia de desventuras, sofrimento, esperanças. Pelo acaso, ou providência divina, não se sabe ao certo, na verdade, se colocar em dúvida as possíveis causas e razões, conseguiu chegar aos cinqüenta anos. Parciais em força e virilidade, Sepúlveda enfiava-se a ser garanhão. Libertino, filho da puta, todos os finais de semana freqüentava as casas de tolerância, os puteiros, as zonas, procurando sua maior diversão: trepar a dinheiro. Gostava de pagar por sexo. Tinha quase obsessão em sentir prazer sem ter que se preocupar com sentimentos, culpas, paixões e amores. Carnal, simplesmente carnal. 


Ele gostava de putas, da sua sensualidade artificial, de acordo com os cânones dos filmes pornográficos, os farrapos de roupas compradas nas feiras de artigos importados, as banhas saltando da barriga pela alimentação barata e gordurosa, o cheiro de suor daquele lugar abafado misturado com odor de cigarros e perfume barato, não tinha preferência por cor, raça ou credo, a única exigência que tinha era: enrabar. Se a puta não liberasse, ele utiliza de seus artifícios de macho no cio. Todas as putas que frescaram com ele, liberaram o cuzinho na hora. Todas, e apenas liberavam para ele. Já era cliente antigo de todos os estabelecimentos da cidade. Era conhecido como Sepúlveda, o camarada das putas. 


Estava jurado de morte por suas atividades políticas: sindicalista e comunista renitente. Lutava no interior do Pará pela reformar agrária e pela revolução social. Filiado ao Partido Comunista desde a adolescência, era um dos mais destacados militantes em toda a sua trajetória. Com sólida formação política, aprendeu a ler tardiamente, depois dos quinze anos, de família camponesa, compreendeu o seu lugar no mundo e as contradições sociais na vida diária, na vida de sua família, na vida dos pais famélicos da terra, dos seus inúmeros irmãos exaustos de trabalhar na terra, e mortos de fome e cansaço ao fim do dia, na opulência e riqueza do fazendeiro que comprava a produção das suas roças a preço irrisório como a ato dissimulado de prestar um favor a meia-dúzia de mortos de fome, foram esses acontecimentos que o formaram politicamente, mas Sepúlveda queria saber as causas disso, dessa miséria ao lado da riqueza, da humilhação compartilhando o mesmo espaço do sucesso, queria saber as razões dessa lógica social perversa que todo dia matava aos poucos a ele e sua família. 


A filosofia da práxis foi sua resposta. Explicar o mundo, o real, a vida cotidiana pautada pela síntese de múltiplas determinações que produzem a totalidade social, quando os políticos desviam dinheiro público, pessoas morrem nos hospitais, professores são mal pagos, a pobreza aumenta, a riqueza se concentra, a luta de classes em uma sociedade fundada no antagonismo de interesses sociais, porque quem paga salário nunca vai ter os mesmos interesses de quem vive do mesmo salário, eles não vivem no mesmo bairro, não tem a mesma educação, não tem o mesmo nível cultural, não tem os mesmos gostos, preferências, ou interesses políticos, em suma, não tem a mesma visão de mundo, que a infra-estrutura econômica, em última instância, determina as relações superestruturais, no qual a maior oferta de crédito, pessoas consumindo, deus abençoando os lares, fábricas produzindo, empresários acumulando, juízes garantindo a ordem social, a complexidade da divisão do trabalho, sobretudo, na separação entre trabalho intelectual e manual, os produtores diretos, cultivam a terra, bóias-frias, semi-escravos da terra, aqueles que constroem o mundo, os prédios, as pontes, enfim, a vida concreta, os trabalhadores vivem com minguados salários, de outro lado, os profissionais das atividades qualificadas, médicos, advogados, engenheiros, administradores, políticos, enfim, todos aqueles que pelo adestramento de noções conceituais que mantém o status quo, e os seus polpudos rendimentos que reproduzem o sistema. 


Suas relações familiares eram estranhas. Casou-se, um matrimônio de três décadas. Não tinha filhos. Miranda, Dona Miranda, sua mulher. Católica e conservadora. Concordava com as idéias e atividades do marido. Não se envolvia, foi ensinada que comunista era autoritário, comedor de criancinha, descrente, desobediente. No entanto, antes de ser comunista, ela amava Sepúlveda, amava o homem por trás do comunista. Fumava desesperadamente. Bebia pouco, apenas para manter a paz no lar. Não gostava de ficar bêbada, achava que isso não era coisa de pessoa respeitável, cristã como ela. Os trabalhos domésticos eram a sua razão de viver. Obviamente, a contragosto de Sepúlveda, que não media esforços em politizar a mulher, lia o jornal, empresta livros, discutia com ela assuntos do cotidiano. Nada. Ela sabia da vida mundana de Sepúlveda, e consentia tacitamente, às vezes dava umas porradas nele quando chegava bêbado, com cheiro de puta, sujo de batom. Ela perdoava. Sempre perdoava. Era o amor de Deus agindo em seu coração, a piedade cristã. E o seu amor. Era o seu Sepúlveda. O seu homem. O comunista das putas. 


Ultimamente, Sepúlveda estava nervoso, inquieto. Grandes extensões de terras improdutivas foram ocupadas pelo Movimento Sem Terra, várias reintegrações de posse foram impetradas por juízes, a polícia estava agitava e ameaçando a muito tempo invadir e expulsar toda aquela corja de vagabundos improdutivos, mas aquela altura, apenas ameaçava. Sepúlveda sempre estava nos acampamentos, pelo menos três dias da semana, coordenando as atividades de mobilização política. O Estado estava em guarda para garantir o monopólio da propriedade. Os acampamentos estavam quietos, a vida transcorria calmamente. Subitamente, de um dia para outro, no subir da poeira das vicinais que dão acesso a fazenda ocupada, ouviu-se o marchar compassado na terra batida. 


A polícia avançou rapidamente com coordenadas militares, treino de guerra, escudos de choque, gás lacrimogêneo, e armas em punho. Chegaram ao amanhecer. Avistaram os acampamentos, jogaram as bombas de gás, tiros para o alto. Pessoas correndo, desesperadas, sufocando, assustadas com os tiros. Mulheres, idosos, crianças. Foram os primeiros alvos. Corpos tombando. Morte sobre morte. Crianças sobre crianças. Mulheres sobre mulheres. Velhos sobre velhos. Trabalhadores sobre trabalhadores. Quinhentas pessoas foram sumariamente executadas, covardemente, sem a possibilidade de defesa, para garantir o direito de propriedade. Não houve sobreviventes. Sem testemunhas. O crime perfeito. O Estado fez seu papel – um crime de Estado. Sepúlveda morreu com um tiro na cabeça. Morreu sem a utopia. Morreu sem a Revolução. Que Marx o tenha!

(Felipov) 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ela paga o aluguel (*)





Ela paga o aluguel. Eu fico estirado neste sofá todo tempo, todos os dias, esperando algo que não chega, ou algo que chegou e partiu, sem que eu pudesse mover minhas mãos, acostumadas aos controles de jogos, para pegá-lo. Não sei o que me escapou, se é que isso aconteceu, mas reconheço que o que mais passa por mim é o tempo. Ele foge, cai, escapa, sangra em milhares de gotículas vermelhas de segundos e centésimos, através das horas e dias, semanas, meses e anos, onde eu esqueço completamente as convenções nominais, de terças, quartas-feiras, e ordens de imperadores romanos, cristalizadas por mandamentos papais na cronologia nossa de cada dia. Hoje é abril? Maio? Há quantos anos morreu o que foi crucificado? O filho de mais essa abstração que não habita a cabeça que acostumei chamar de minha quando estou acordado, estirado, como sempre, nesse sofá, vestindo meu moletom azul, barba crescida, olhos vidrados na tela do computador, esperando a hora dela voltar da rua.

Parasita? Não, um parasita ainda tem algum desígnio, alguma missão, algum trabalho de grande valia a realizar no mundo, qual seja, o de estar vivo e aproveitar-se da vida alheia com a finalidade mais-que-sagrada de também manter-se vivo. Não, sem dúvidas o parasita e o hospedeiro mantêm uma relação de mutualismo. A ecologia está errada. Não há nada que o hospedeiro mais deseje que alimentar o parasita, pois aí ele poderá atribuir seu desânimo, as suas crises fisiológicas, a enxaqueca que lhe atormenta, os seus acessos de vômito, a podridão do seu cotidiano a um agente externo, a essa rêmora, que nada mais faz que se alimentar das migalhas de vida do seu tubarão. O parasita elimina a dúvida do hospedeiro, personifica os males que ele não pode pensar que não tenham causa ou cura. Não, minha vida não tem nada dessa pequena grandiosidade, desse microcosmo, dessa holística perfeita. Não. Eu apenas estou deitado nesse sofá.

Escrevo. Sim, escrevo. Escrevo porque cansei de matar alienígenas, terroristas, alemães, árabes, gente branca, gente negra nos jogos eletrônicos. Às vezes cansa ser deus ou americano nesses aparelhos. Nem sempre me canso, razão pela qual nem sempre escrevo. Nem as palavras perdem o valor porque não são escritas, nem eu perco nada porque não as escrevi. Palavras que não são usadas não valem nada de qualquer maneira, são só um monte de letras prensadas e encadernadas nos dicionários que ninguém consulta, ou um monte de dados binários alocados em algum servidor, como há milhares desses, dispersos pelo mundo como grandes latrinas da globalização. Não há o que perder para mim também. Não tenho nada que perder, nunca ganhei nada e o pouco que herdei perdi numa quinta-feira. Isso foi numa época em que eu ainda sabia os dias da semana, distinguia uns dos outros, caminhava pelas ruas e sentia o odor agradável dos escapamentos dos carros misturado à imundície das ruas dessa capital, ficava espantado com os estúpidos que resmungavam nos fóruns onde eu julgava lides, demandas, processos, quando um trinta e oito e poucas balas ofereceriam uma justiça de melhor qualidade a qualquer interessado. Só não posso dizer que isso faz muito tempo, pois essa noção está no bolso de dentro do paletó desse homem de quem eu falei, que guarda semelhanças físicas e emocionais com este indivíduo que passa os dias neste barato sofá azul, já rasgado em vários pontos, nos quais pode se ver a espuma suja saindo, num paraíso para ácaros e doenças respiratórias, como diria o doutor Dráuzio Varela.

Doutor Dráuzio, o que quer um indivíduo morbidamente exilado num sofá da vida? O que ele deseja? O que acontece na mente dessas pessoas que não produzem, que não trabalham, que renegam tudo que na vida podemos chamar de respeitável? Doutor Dráuzio? Doutor, o senhor me ouve? Ou será que ouve apenas os presos, os homossexuais, os portadores de doenças infecto-contagiosas? Eu sou branco, tive uma excelente educação, filho de uma boa família, o senhor me ouve Doutor Dráuzio? O que tem de errado comigo? Seu velho careca, politicamente correto, embusteiro, demagogo, dono de um texto vulgar, clichê, empregado da Rede Globo, possível eleitor do PSDB, do PT, de qualquer outro partido. Pensa que nesse mundo o que conta é ser bom, é ajudar as minorias? Doutor Dráuzio, eu queria que o senhor, com todo esse seu bom-mocismo, esse seu anti-tabagismo, essa sua moderação, estivesse um dia sentado aqui nesse sofá e eu lhe mostraria a minha versão do mundo. No meu mundo só há o sofá e a espera. Ele é vazio, propositalmente vazio, desesperadamente vazio. Doutor Varela, mestre da medicina humana, artífice do sentimentalismo dos fisiologistas, ilusionista do afeto, venha cá e eu te mostrarei o paraíso, serei o teu Jesus Cristo e tu serás o meu João Batista, um primo distante, cuja sagrada cabeça ornamentou uma mundana bandeja. Aqui no meu mundo, o sagrado e o mundano sempre estão combinados, juntos, de mãos dadas, como o sofá e a espera. Pensando bem, não venha. Não gosto de visitas. Pode continuar a chafurdar na sua bondade.

Quando chove, eu me sinto só. Não quer dizer que eu não me sinta só nos outros momentos, mas nesse, especialmente, me dou conta da solidão, de que ela ainda não está aqui. E como chove nesta cidade! Eu ouço os pingos começarem, como pequenas pedras no vidro da janela, chego perto e vejo o céu cinza, raios, ouço os trovões, e logo começa a chuva propriamente dita, para lavar essa cidade suja e para sujá-la onde está limpa, exatamente como ocorre aos seres humanos, nos quais uma chuva pode despertar para o que é bom ou ligar o botão, permanentemente acessível, do inferno, desse lugar onde o diabo brinca com os homens, como pequenos bonecos de plástico. Eu sei que talvez isso seja demais, talvez a sua vida não seja diferente. Todo mundo sente coisas diferentes quando vê a chuva, quando vê o céu, quando enxerga as águas barrentas da baía, do alto do sétimo andar de um prédio público, esperando as cinco da tarde, mas o que é seu é seu, e o que é meu, meu mundo, é só lançar olhares furtivos para a porta, enquanto encaro o teto, deitado de peito para cima no sofá, ouvindo a chuva, esperando que um meteoro acabe com este corpo celeste no qual habito, essa sucessão de esperas, até que chega ao fim, silenciosa como o apocalipse, a falta que ela me faz. Ela abre a porta. Ela tem a chave. Ela paga o aluguel e entra sorrindo, acabando com tudo que é meu e eu me encontro, instantaneamente teletransportado, em tudo que é dela, que me fala na única língua que compreendo, na única língua viva do mundo, nessa língua que me diz tudo sem fonemas, sem símbolos, sem fala, só o silêncio de um olhar mudo e um corpo que eu capturo em meus braços, num só movimento, rezando a ela que não saia de novo, e seus lábios então se movem, dizendo que está de volta. Suas palavras reverberam tanto na minha cabeça que nem percebo que a chuva passou e, enrolado nela, deitados no sofá, digo, sem palavras, o quanto estou feliz, por não sentir falta do tempo.

(Igor Farias)

(*) Mais um texto do simpatizante-colaborador deste blog. Obrigado por mais esta brilhante contribuição.  

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Misantropia



Moro sozinho. Acabo de assistir televisão. Deitado no sofá. Bebia café. Preguiça, espreguiço-me. Olho para o teto. Observava um telejornal qualquer, com pouco interesse. Com as noticias de sempre. Corrupção, mortes e bundas. E penso.

“Tem alguma coisa muito errada comigo. Só pode ser. Ontem assistindo televisão, vi tanta atrocidade, atentados claros a inteligência de qualquer pessoa que consegue pensar minimamente. Incrível isso. Um absurdo. Hoje a mesma coisa. E amanhã, provavelmente, será a mesma coisa. Para onde vamos assim? Que tipo de sociedade é essa que se apregoa a liberdade em todos os sentidos, mas não se tem a liberdade de pensar. Estamos progressivamente menos informados com abundância de notícias. Alienação por excesso de informação. Um programa encarcerar meia dúzia de idiotas funcionais famosos que se digladiam, caluniam, difamam em troca de um milhão de reais – demonstram que o dinheiro compra qualquer coisa, até a vergonha da exposição pública. É o “jogo”. Outro trata da cor do vestido cafona da atriz que ganhou o Oscar. Outro vende uma churrasqueira que só falta matar o boi, assar a carne e mastigar por mim. Viver por mim. Crianças assistem desenhos nada infantis. As crianças não são mais infantis. São adultos em miniatura. A desgraça, a morte, o sofrimento alheio são explorados como factóides que duram os efêmeros minutos que valem como furo, duram enquanto rendem lucros aos patrocinadores, duram até que possam convencer potenciais consumidores. A existência televisionada. Por que? Qual a razão disso? Qual o sentido disso? Sou apenas eu que repara isso, e fica incomodado, com esse mal-estar. É isso, é precisamente isso que sinto: mal-estar. É esse mal-estar que me faz pensar. Temos a liberdade de expressão, mas não é oferecida a liberdade de pensamento. Digo isso pela simples razão de que para se promover a liberdade em qual seja a sua dimensão é indelével que se possibilite os meios para tal se objetive. Claro está, isso não ocorre. De maneira similar, equivale dizer que uma pessoa com fome tem o direito de comer. Ora, fracamente, do que adianta ela ter o direito de comer, senão tem dinheiro para comprar o alimento necessário para mantê-la viva – fisiologicamente viva. A mesma coisa ocorre em se ter o direito a liberdade de expressão, com a abundância de informação, se isso não possibilita o pensamento. Mas, pensando melhor, isso faz todo o sentido. Essa promoção em massa do não pensamento. Pensar é fundamentalmente questionar, problematizar, duvidar. Isso é subversivo em si. Imagina a imensa maioria das pessoas pensassem. A corrupção não seria algo normal, quase natural. Pessoas morrerem na portas de hospitais não ia ser algo corriqueiro. O salário dos deputados, senadores e congêneres não seria uma fatalidade necessária da democracia. O governo garantir o lucro dos banqueiros uma maneira de manter o livre mercado. Professores, bancários, carteiros, operários da construção civil, trabalhadores, assalariados em geral fazerem greve por salários dignos, e não serem criminalizados no seu direito de greve. Pessoas jogadas na rua como farrapos humanos seria visto como um crime contra a humanidade. A fome seria um atentado violento contra a integridade humana. O analfabetismo um ataque contra a democracia. As livrarias seriam mais freqüentadas. Cada pessoa leria mais livros por ano. Enfim, as pessoas, as pessoas, as pessoas. Se as pessoas pensassem eu não precisaria estar aqui cogitando como o mundo seria se elas pensassem. O meu problema é que eu não aceito as pessoas com a sua estupidez. Eu não aceito a minha própria estupidez. Qualquer tipo de mudança efetiva, revolucionária, em última instância, vai ser encampada por essas pessoas estúpidas. Na verdade, é necessário cultivar o pensamento em um processo progressivo e irreversível de elucidação. Pois, salvo me provem contrário, pessoas estúpidas não fazem revolução. Revolução, tão atual e anacrônica, tão século XX, e na ordem do dia do século XXI. Onde queres um lar, Revolução”.

Passado o devaneio, fui tomar banho e dormi. Amanhã vendo a televisão e vou comprar uns livros no sebo. E café, que acabou.

(Felipov)

sábado, 5 de novembro de 2011

Silêncio





Muita chuva. Era inverno. Ruas alagadas. Lama, limo e fedor de esgoto. Pés molhados, sujos de lodo, sandálias na ponta dos dedos, sapatos nas mãos, calças aos joelhos, vestidos na mão. A vergonha fincava os rostos. Casas velhas de madeira, tetos de brasilit, sem calçada e sarjeta. Ladeadas por casas de alvenaria, erguidas toscamente, cheias de infiltrações e rachaduras, construídas com muito esmero, suor e trabalho. O orgulho de ter seu quadrado no mundo acalenta os corações de gente simples. A satisfação da garantia ao direito a propriedade – garante o status quo. Dona Coralina entra no hospital. Silêncio – diz a placa. Muitas pessoas em filas – um burburinho frenético de conversas paralelas. Urgência. Emergência. Consultas de rotina. Todos juntos. Compartilhando o mesmo espaço. Fraturas, vacinas, doenças infecciosas. Pacientes. O cheiro de álcool, característico de hospitais, empestava o ambiente, ao lado, do odor forte de desinfetante, de suor provocando pelo calor da multidão aglomerada, e perfume barato. Corredores nauseabundos com doentes empilhados uns sobre os outros. Soros suspensos atrapalhando a passagem, enfermeiras enlouquecidas andam por todos os lados fazendo trabalhos de médicos. Diagnosticam, medicam e despacham. Dona Coralina não consegue ser atendida na hora. Por conta de uma fratura ao varrer sua casa, procurou o hospital. Nos próximos dois meses foi marcada sua consulta. No diagnóstico, a enfermeira não fez perguntas vitais para uma idosa de 75 anos com uma fratura simples: se era portadora de doença crônica. Dona Coralina é diabética. Dois meses depois, ela voltou. Resultado: perdeu a perna. Silêncio – diz a placa. Seu Salvador, com falta de ar, foi ao hospital procurar atendimento. Sofre de hipertensão. Não foi atendido. Razão: leitos ocupados. No meio do caminho, procurando outra unidade de saúde, vem a óbito. Ataque cardíaco fulminante. Silêncio – diz a placa. Tereza estava no oitavo mês de gestação. Gêmeos: Rafaela e Camila. Contrações em intervalos cada vez menores acusavam que suas filhas queriam vir ao mundo. Já estava na procura do terceiro hospital, no momento em que as meninas nasceram. Natimortas, o marido fez o parto, na frente, na calçada do quarto hospital. Uma maternidade de referência. Havia leitos. Silêncio – diz a placa. Davi tem Aids. Precisa tomar seu coquetel com freqüência. É portador a cinco anos. Vive com relativa qualidade de vida. Há dois meses não tomava o coquetel. Estava em falta no hospital. Morreu ontem por conta das complicações de uma gripe. Silêncio – dizia a placa. Mortes, mortes, mortes habitam o local no qual deveria garantir a vida. Os hospitais viraram a ante-sala dos cemitérios. Médicos e coveiros são parceiros de profissão, um diagnóstica a morte, o outro a enterra. E a vida segue, de morte em morte, entre os doentes que sofrem, aqueles que têm saúde e são indiferentes, e outros que compram sua saúde e estão pouco se importando se meia dúzia de pobres estão morrendo. E de quem é a culpa de tantas mortes? Sua, caro leitor, a culpa, a razão, o motivo, a explicação para tantas mortes é sua. É você quem promove tantas mortes estúpidas e evitáveis no momento em que escolhe por livre consciência, ao menos suponho, já que vivemos em uma democracia, os seus representantes para gerir a coisa pública. São os seus representantes que, ao gerirem o Estado e administrarem o dinheiro recolhidos nos impostos, promovem tamanha carnificina. A corrupção mata mais que uma guerra. A corrupção matou aquelas pessoas. E você, meu caríssimo leitor, você opinião pública, você é quem escolhe a corrupção. Silêncio – diz a placa.

(Felipov)