Senil, velhice carcomida, meio corcunda, gesticular nervoso ao falar, empostar de voz, retórica de falar merda com convicção, voz grossa de tenor, rabugento, chatice atávica, um ralo cavanhaque, bigode amarelado pelos cigarros fumados, impávida calvície, cor da tez branca encardida, olhos azuis, sorriso triste e resignado, cigarro aceso sempre entre os dedos amarelados pela nicotina acumula de uma vida, copo de cachaça ao lado, fiel e inseparável companheiro, algumas culpas, sempre há culpas, remorsos, remorsos de homem honesto e sincero consigo mesmo, cansaço, o cansaço adquirido pelas inúmeras responsabilidades e obrigações que fizeram ser o que era: um homem amado, admirado, temido, odiado, invejado. A família, o trabalho, a devassidão, a boêmia, e muitas coisas inacabadas no decorrer da vida, Sepúlveda estava fenecendo.
Vida dura, cheia de desventuras, sofrimento, esperanças. Pelo acaso, ou providência divina, não se sabe ao certo, na verdade, se colocar em dúvida as possíveis causas e razões, conseguiu chegar aos cinqüenta anos. Parciais em força e virilidade, Sepúlveda enfiava-se a ser garanhão. Libertino, filho da puta, todos os finais de semana freqüentava as casas de tolerância, os puteiros, as zonas, procurando sua maior diversão: trepar a dinheiro. Gostava de pagar por sexo. Tinha quase obsessão em sentir prazer sem ter que se preocupar com sentimentos, culpas, paixões e amores. Carnal, simplesmente carnal.
Ele gostava de putas, da sua sensualidade artificial, de acordo com os cânones dos filmes pornográficos, os farrapos de roupas compradas nas feiras de artigos importados, as banhas saltando da barriga pela alimentação barata e gordurosa, o cheiro de suor daquele lugar abafado misturado com odor de cigarros e perfume barato, não tinha preferência por cor, raça ou credo, a única exigência que tinha era: enrabar. Se a puta não liberasse, ele utiliza de seus artifícios de macho no cio. Todas as putas que frescaram com ele, liberaram o cuzinho na hora. Todas, e apenas liberavam para ele. Já era cliente antigo de todos os estabelecimentos da cidade. Era conhecido como Sepúlveda, o camarada das putas.
Estava jurado de morte por suas atividades políticas: sindicalista e comunista renitente. Lutava no interior do Pará pela reformar agrária e pela revolução social. Filiado ao Partido Comunista desde a adolescência, era um dos mais destacados militantes em toda a sua trajetória. Com sólida formação política, aprendeu a ler tardiamente, depois dos quinze anos, de família camponesa, compreendeu o seu lugar no mundo e as contradições sociais na vida diária, na vida de sua família, na vida dos pais famélicos da terra, dos seus inúmeros irmãos exaustos de trabalhar na terra, e mortos de fome e cansaço ao fim do dia, na opulência e riqueza do fazendeiro que comprava a produção das suas roças a preço irrisório como a ato dissimulado de prestar um favor a meia-dúzia de mortos de fome, foram esses acontecimentos que o formaram politicamente, mas Sepúlveda queria saber as causas disso, dessa miséria ao lado da riqueza, da humilhação compartilhando o mesmo espaço do sucesso, queria saber as razões dessa lógica social perversa que todo dia matava aos poucos a ele e sua família.
A filosofia da práxis foi sua resposta. Explicar o mundo, o real, a vida cotidiana pautada pela síntese de múltiplas determinações que produzem a totalidade social, quando os políticos desviam dinheiro público, pessoas morrem nos hospitais, professores são mal pagos, a pobreza aumenta, a riqueza se concentra, a luta de classes em uma sociedade fundada no antagonismo de interesses sociais, porque quem paga salário nunca vai ter os mesmos interesses de quem vive do mesmo salário, eles não vivem no mesmo bairro, não tem a mesma educação, não tem o mesmo nível cultural, não tem os mesmos gostos, preferências, ou interesses políticos, em suma, não tem a mesma visão de mundo, que a infra-estrutura econômica, em última instância, determina as relações superestruturais, no qual a maior oferta de crédito, pessoas consumindo, deus abençoando os lares, fábricas produzindo, empresários acumulando, juízes garantindo a ordem social, a complexidade da divisão do trabalho, sobretudo, na separação entre trabalho intelectual e manual, os produtores diretos, cultivam a terra, bóias-frias, semi-escravos da terra, aqueles que constroem o mundo, os prédios, as pontes, enfim, a vida concreta, os trabalhadores vivem com minguados salários, de outro lado, os profissionais das atividades qualificadas, médicos, advogados, engenheiros, administradores, políticos, enfim, todos aqueles que pelo adestramento de noções conceituais que mantém o status quo, e os seus polpudos rendimentos que reproduzem o sistema.
Suas relações familiares eram estranhas. Casou-se, um matrimônio de três décadas. Não tinha filhos. Miranda, Dona Miranda, sua mulher. Católica e conservadora. Concordava com as idéias e atividades do marido. Não se envolvia, foi ensinada que comunista era autoritário, comedor de criancinha, descrente, desobediente. No entanto, antes de ser comunista, ela amava Sepúlveda, amava o homem por trás do comunista. Fumava desesperadamente. Bebia pouco, apenas para manter a paz no lar. Não gostava de ficar bêbada, achava que isso não era coisa de pessoa respeitável, cristã como ela. Os trabalhos domésticos eram a sua razão de viver. Obviamente, a contragosto de Sepúlveda, que não media esforços em politizar a mulher, lia o jornal, empresta livros, discutia com ela assuntos do cotidiano. Nada. Ela sabia da vida mundana de Sepúlveda, e consentia tacitamente, às vezes dava umas porradas nele quando chegava bêbado, com cheiro de puta, sujo de batom. Ela perdoava. Sempre perdoava. Era o amor de Deus agindo em seu coração, a piedade cristã. E o seu amor. Era o seu Sepúlveda. O seu homem. O comunista das putas.
Ultimamente, Sepúlveda estava nervoso, inquieto. Grandes extensões de terras improdutivas foram ocupadas pelo Movimento Sem Terra, várias reintegrações de posse foram impetradas por juízes, a polícia estava agitava e ameaçando a muito tempo invadir e expulsar toda aquela corja de vagabundos improdutivos, mas aquela altura, apenas ameaçava. Sepúlveda sempre estava nos acampamentos, pelo menos três dias da semana, coordenando as atividades de mobilização política. O Estado estava em guarda para garantir o monopólio da propriedade. Os acampamentos estavam quietos, a vida transcorria calmamente. Subitamente, de um dia para outro, no subir da poeira das vicinais que dão acesso a fazenda ocupada, ouviu-se o marchar compassado na terra batida.
A polícia avançou rapidamente com coordenadas militares, treino de guerra, escudos de choque, gás lacrimogêneo, e armas em punho. Chegaram ao amanhecer. Avistaram os acampamentos, jogaram as bombas de gás, tiros para o alto. Pessoas correndo, desesperadas, sufocando, assustadas com os tiros. Mulheres, idosos, crianças. Foram os primeiros alvos. Corpos tombando. Morte sobre morte. Crianças sobre crianças. Mulheres sobre mulheres. Velhos sobre velhos. Trabalhadores sobre trabalhadores. Quinhentas pessoas foram sumariamente executadas, covardemente, sem a possibilidade de defesa, para garantir o direito de propriedade. Não houve sobreviventes. Sem testemunhas. O crime perfeito. O Estado fez seu papel – um crime de Estado. Sepúlveda morreu com um tiro na cabeça. Morreu sem a utopia. Morreu sem a Revolução. Que Marx o tenha!
Vida dura, cheia de desventuras, sofrimento, esperanças. Pelo acaso, ou providência divina, não se sabe ao certo, na verdade, se colocar em dúvida as possíveis causas e razões, conseguiu chegar aos cinqüenta anos. Parciais em força e virilidade, Sepúlveda enfiava-se a ser garanhão. Libertino, filho da puta, todos os finais de semana freqüentava as casas de tolerância, os puteiros, as zonas, procurando sua maior diversão: trepar a dinheiro. Gostava de pagar por sexo. Tinha quase obsessão em sentir prazer sem ter que se preocupar com sentimentos, culpas, paixões e amores. Carnal, simplesmente carnal.
Ele gostava de putas, da sua sensualidade artificial, de acordo com os cânones dos filmes pornográficos, os farrapos de roupas compradas nas feiras de artigos importados, as banhas saltando da barriga pela alimentação barata e gordurosa, o cheiro de suor daquele lugar abafado misturado com odor de cigarros e perfume barato, não tinha preferência por cor, raça ou credo, a única exigência que tinha era: enrabar. Se a puta não liberasse, ele utiliza de seus artifícios de macho no cio. Todas as putas que frescaram com ele, liberaram o cuzinho na hora. Todas, e apenas liberavam para ele. Já era cliente antigo de todos os estabelecimentos da cidade. Era conhecido como Sepúlveda, o camarada das putas.
Estava jurado de morte por suas atividades políticas: sindicalista e comunista renitente. Lutava no interior do Pará pela reformar agrária e pela revolução social. Filiado ao Partido Comunista desde a adolescência, era um dos mais destacados militantes em toda a sua trajetória. Com sólida formação política, aprendeu a ler tardiamente, depois dos quinze anos, de família camponesa, compreendeu o seu lugar no mundo e as contradições sociais na vida diária, na vida de sua família, na vida dos pais famélicos da terra, dos seus inúmeros irmãos exaustos de trabalhar na terra, e mortos de fome e cansaço ao fim do dia, na opulência e riqueza do fazendeiro que comprava a produção das suas roças a preço irrisório como a ato dissimulado de prestar um favor a meia-dúzia de mortos de fome, foram esses acontecimentos que o formaram politicamente, mas Sepúlveda queria saber as causas disso, dessa miséria ao lado da riqueza, da humilhação compartilhando o mesmo espaço do sucesso, queria saber as razões dessa lógica social perversa que todo dia matava aos poucos a ele e sua família.
A filosofia da práxis foi sua resposta. Explicar o mundo, o real, a vida cotidiana pautada pela síntese de múltiplas determinações que produzem a totalidade social, quando os políticos desviam dinheiro público, pessoas morrem nos hospitais, professores são mal pagos, a pobreza aumenta, a riqueza se concentra, a luta de classes em uma sociedade fundada no antagonismo de interesses sociais, porque quem paga salário nunca vai ter os mesmos interesses de quem vive do mesmo salário, eles não vivem no mesmo bairro, não tem a mesma educação, não tem o mesmo nível cultural, não tem os mesmos gostos, preferências, ou interesses políticos, em suma, não tem a mesma visão de mundo, que a infra-estrutura econômica, em última instância, determina as relações superestruturais, no qual a maior oferta de crédito, pessoas consumindo, deus abençoando os lares, fábricas produzindo, empresários acumulando, juízes garantindo a ordem social, a complexidade da divisão do trabalho, sobretudo, na separação entre trabalho intelectual e manual, os produtores diretos, cultivam a terra, bóias-frias, semi-escravos da terra, aqueles que constroem o mundo, os prédios, as pontes, enfim, a vida concreta, os trabalhadores vivem com minguados salários, de outro lado, os profissionais das atividades qualificadas, médicos, advogados, engenheiros, administradores, políticos, enfim, todos aqueles que pelo adestramento de noções conceituais que mantém o status quo, e os seus polpudos rendimentos que reproduzem o sistema.
Suas relações familiares eram estranhas. Casou-se, um matrimônio de três décadas. Não tinha filhos. Miranda, Dona Miranda, sua mulher. Católica e conservadora. Concordava com as idéias e atividades do marido. Não se envolvia, foi ensinada que comunista era autoritário, comedor de criancinha, descrente, desobediente. No entanto, antes de ser comunista, ela amava Sepúlveda, amava o homem por trás do comunista. Fumava desesperadamente. Bebia pouco, apenas para manter a paz no lar. Não gostava de ficar bêbada, achava que isso não era coisa de pessoa respeitável, cristã como ela. Os trabalhos domésticos eram a sua razão de viver. Obviamente, a contragosto de Sepúlveda, que não media esforços em politizar a mulher, lia o jornal, empresta livros, discutia com ela assuntos do cotidiano. Nada. Ela sabia da vida mundana de Sepúlveda, e consentia tacitamente, às vezes dava umas porradas nele quando chegava bêbado, com cheiro de puta, sujo de batom. Ela perdoava. Sempre perdoava. Era o amor de Deus agindo em seu coração, a piedade cristã. E o seu amor. Era o seu Sepúlveda. O seu homem. O comunista das putas.
Ultimamente, Sepúlveda estava nervoso, inquieto. Grandes extensões de terras improdutivas foram ocupadas pelo Movimento Sem Terra, várias reintegrações de posse foram impetradas por juízes, a polícia estava agitava e ameaçando a muito tempo invadir e expulsar toda aquela corja de vagabundos improdutivos, mas aquela altura, apenas ameaçava. Sepúlveda sempre estava nos acampamentos, pelo menos três dias da semana, coordenando as atividades de mobilização política. O Estado estava em guarda para garantir o monopólio da propriedade. Os acampamentos estavam quietos, a vida transcorria calmamente. Subitamente, de um dia para outro, no subir da poeira das vicinais que dão acesso a fazenda ocupada, ouviu-se o marchar compassado na terra batida.
A polícia avançou rapidamente com coordenadas militares, treino de guerra, escudos de choque, gás lacrimogêneo, e armas em punho. Chegaram ao amanhecer. Avistaram os acampamentos, jogaram as bombas de gás, tiros para o alto. Pessoas correndo, desesperadas, sufocando, assustadas com os tiros. Mulheres, idosos, crianças. Foram os primeiros alvos. Corpos tombando. Morte sobre morte. Crianças sobre crianças. Mulheres sobre mulheres. Velhos sobre velhos. Trabalhadores sobre trabalhadores. Quinhentas pessoas foram sumariamente executadas, covardemente, sem a possibilidade de defesa, para garantir o direito de propriedade. Não houve sobreviventes. Sem testemunhas. O crime perfeito. O Estado fez seu papel – um crime de Estado. Sepúlveda morreu com um tiro na cabeça. Morreu sem a utopia. Morreu sem a Revolução. Que Marx o tenha!
(Felipov)