sábado, 13 de novembro de 2010

Seu Dalcídio




Esta é a história de um homem bom. Esta é a história do Seu Dalcídio. Alguém que amou demais. Amou demasiadamente. E não teve um final feliz. Seu nome completo: Dalcídio Guilhermino Almeida. 40 anos. Português do Porto. Morava em Belém há uns 30 anos. Herdou o negócio da família: uma padaria. Com um nome bem peculiar: “Lisboa”. Tinha uma bela barba e um início de calvície. Usava suspensórios, camisa de linho branca e calça social marrom, que parecia uniforme de garçom de boteco da década de 1970 – só faltava o raiban e as costeletas. Um sentimentalismo lusitano a la “fado tropical” – uma de suas músicas favoritas, como sempre comentava na roda de música no bar da esquina, o conhecidíssimo “Bar do pirento”.

Tomava todos os dias uma taça de vinho do porto – como um bom português. Sua irmã, o único parente vivo, pois seus pais já eram falecidos, lhe enviava todos os meses. Dona Violeta era casada com um bem-sucedido corretor de imóveis, o Joaquim, e tinha dois filhos: Gumercindo e Mariana. Dalcídio morria pelos sobrinhos, todos os anos, um dos dois passava uma temporada com ele no Brasil. Ele amava a família, apesar de não ter uma boa relação com seu cunhado – por conta de dívidas. Amava sua irmã e os sobrinhos – era solteiro convicto. Dalcídio era um homem simples. Um português muito brasileiro. Levava uma vida pacata, sua principal ocupação era cuidar da padaria. Torcia pela Tuna – obviamente, não era uma pessoa muito feliz com o futebol. Gostava de jogar no bicho. E jogar conversa fora no bar nos domingos à tarde.

Contudo, sua vida mudou. Julieta mudou sua vida. Era uma moça recém-chegada ao bairro, de uns 25 anos. Olhos verdes, mais alva que a neve, esbelta e formosa. Cabelos crespos e um estilo de antropóloga. Morava só, perto da padaria. Havia se mudado há duas semanas. Iria cursar História, queria pesquisar período colonial na Amazônia – apesar de todas as discussões atuais, era uma caiopradiana convicta. Mineira de Belo Horizonte. Gostou de Belém. Mas detestou o calor, a violência e o trânsito. Em certa manhã, ela foi comprar pão de gergelim, seu favorito. Dalcídio se apaixonou avassaladoramente. “Veja dois pães de gergelim, quentes, por favor” – ela pediu de forma solicita e sorridente. Ele que estava distraído dando instruções a um funcionário, quando ouviu aquela voz doce e forte, ficou paralisado quando a viu. “Cinqüenta centavos, moça” – disse com a voz embargada pela emoção. Ela prontamente lhe deu o dinheiro e recebeu seus pães quentes.

Todos os dias, Julieta ia religiosamente comprar pão na padaria de Dalcídio. Com o convívio começaram as conversas. Dalcídio procurava qualquer desculpa para iniciar uma prosa. Elas se intensificaram no dia em que ele viu um livro do Pessoa na mão dela – se identificava com Álvaro de Campos. Ele era vidrado em literatura – sobretudo, obviamente, a portuguesa; mas gostava da brasileira. Era a afinidade que ele precisava. As conversas foram se tornando mais densas e interessantes. Foi, a partir desse momento, que Julieta reparou de verdade em Dalcídio. E percebeu que ele era apenas um dono de padaria. Descobriu um homem inteligente e simples. Começou a chamá-lo de Guilhermino – gostava do segundo nome dele, e já era um sinal de intimidade. Não demorou muito para que o romance se estabelecesse – por iniciativa dela, a timidez de Dalcídio, sua inteligência e simplicidade haviam lhe conquistado.
No final da tarde, de uma segunda-feira, ela se sentou na padaria e pediu dois cafés. Dalcídio achou estranho. Quando chegou com as duas xícaras de café, ela pediu que ele sentasse e lhe acompanhasse. Começaram a conversar. A cada gole de café, a conversa foi se acalorando. As discordâncias os aproximavam. A inteligência dos argumentos os encantavam. A ironia e sarcasmo das respostas estabeleciam o contato. Depois do último gole de café de Dalcídio, Julieta beija-o subitamente. Ele fica surpreso com a correspondência. Contentamento e sublimação invadiram Dalcídio. O amor encontrou lugar no seu árido coração. Dalcídio iniciava-se pela senda do amor – nunca havia amado na vida.

Foram dois anos da mais completa felicidade ao lado de Julieta. Ele conheceu Minas e se encantou – viciou-se em pão de queijo. Ela visitou Portugal inteiro e não queria mais voltar – se tornou apreciadora inconteste de fado, vinho do porto e bacalhau. Ora ela dormia na casa dele, ora ele dormia na casa dela. Ela aprendeu a fazer o pão de gergelim que tanto gostava – que Dalcídio dizia, em tom de troça, ser pão de passarinho. Do seu passarinho. E ele já era um mestre na arte de fazer pão de queijo – leia-se: pão de queijo a moda mineira; porque, cá entre nós: seria muito estranho um dono de padaria não saber fazer pão de queijo. O apelido dela era “Iaiá” – por conta de uma música que ela gostava, de uma banda que ele não conhecia. A propósito: ele aprendeu mais de música e literatura brasileira. Ela apenas o chamava de “Guilhermino”. Ele adorava o jeito com qual ela fazia carinho em sua barba grisalha, um carinho com suas mãos tão macias e o seu rosto. Roçava delicadamente o seu rosto na barba dele. Ele sentia o seu cheiro: perfume de camomila. A forma como as mãos rústicas dele afagavam seus rebeldes cabelos crespos lhe traziam um sentimento de segurança e paz plenos. Dalcídio ganhava o dia quando via os lindos olhos verdes de Julieta sorrindo timidamente em sua direção.

As diferenças e distâncias mediavam à relação. Julieta tinha seus defeitos e qualidades. Dalcídio não era diferente. Contudo, o ciúme de Dalcídio foi o início do fim. O seu ciúme foi a origem da ruína. Não era algo normal. Nada daquela anedota popular que diz “o ciúme é o perfume do amor”. Nada disso. Dalcídio tinha um ciúme e desconfiança quase que patológico por Julieta. No começo, ela compreendia. Ela o amava. Contudo, com o tempo, a situação tornou-se insustentável. O encanto dissipou-se. O amor arrefeceu-se. Estava sufocada. Ela havia mudado por ele. Agora, estava mudando dele. O interesse por outras pessoas tornou-se inevitável. Chegou-se ao ponto que qualquer um era melhor que Dalcídio. Qualquer um era mais suportável que ele. As brigas intensificaram-se. As conversas ficaram curtas. Os silêncios dizendo tudo. A situação estava insustentável. E Dalcídio achava que podia levar a situação, que um dia ele iria melhorar. Ledo engano.

Em uma manhã de segunda-feira, Julieta apareceu na porta da padaria. Estava com o semblante sério e decidido. E ao seu lado, uma mala. Avisou-o pessoalmente que ia embora – achava que ao menos, por conta de tudo que haviam vivido, era mais digno a se fazer. Foi embora com o seu professor de Filosofia Política, chamado Péricles Carneiro – também mineiro, estavam voltando para Minas; ele era de Itabira. Ela disse: “Adeus, Dalcídio. Fique bem. E sejas feliz”. Resignado e com o rosto banhado em lágrimas, ele apenas acenou positivamente com a cabeça. Sua garganta estava tão embargada que não sairia o menor som audível. Ela partiu. Ele bebeu todo o seu estoque de vinho. Não conseguiu mais trabalhar, conversar. Ele não conseguiu mais viver. Depois da última garrafa de vinho, foi dormi. E não acordou mais. Dalcídio morreu de tristeza. Dalcídio morreu com o seu amor, ciúme e tristeza.

6 comentários:

Juliana Brandão disse...

Monotemático, como sempre.

Porém, como sempre, encantador!

Nairo Bentes; disse...

Gostei. Alguma coisa... talvez o tempo verbal... faz o texto ter um tom de linearidade nos acontecimentos.... parece, que quando ele vê pela primeira vez a tal da Julieta, que o romance já vai terminar..
ou isso deve ser só uma impressão...

Pontualmente gostei da frase: "Gostou de Belém. Mas detestou o calor, a violência e o trânsito"
Um abraço!

Pagliaccio Alves disse...

Eu adivinhei o texto todo. Mas não creio em maciez no decadentismo, caro amigo. E esse texto deveria ser um. ELe na verdade morre de ego, não de tristeza, e essa história de morrer de tristeza. Hahahaha. Eu já conheço bem.

Gostei muito do texto e do desenrolar. Achei o final... Achei que o final poderia ter sido melhor escrito. Mas é um bom texto.

Felipov disse...

Meu caro, eu sou um decadentista moderado. Essa questão do ego é uma interessante percepção. Sempre tive a impressão que pessoas ciumentas são inseguras em relação si mesmas, o que, em última instância, acaba por expressar o seu egocentrismo extremado. Ninguém me coloca na cabeça que ciúme é uma demonstração de sentimentos. Na verdade, é uma das formas mais deploráveis de mesquinhez humana. O ciúme é o Ego no seu estado mais patológico. É a pulsão esquizofrênica. É a idiotice disfarçada em sentimento. Enfim, se o amor começar a se desdobrar em ciúme, uma coisa fique bem clara: estou falando do ciúme extremo, claro que todos temos ciúme, em maior ou menor grau, mas se ele for extremo, procure um analista.

Ana Paula Campos disse...

O ciúme tem sido tema recorrente nos teus textos ultimamente...

Unknown disse...

Olha vou te contar, dentre os que li, e q todos tem denominado como "monotemático", esse é interessante, não só pela história, mas, por causa da maneira - mais uma vez - de como os personagens são pensados por ti. Parece até q conheço o Dalcídio e a Julieta ¬¬. São bem felipovianos! E outra, adoro os teus personagens masculinos, eles são sempre tão apaixonados pelos detalhes, isso é raro! Já pensaste em escrever sobre paixão/amor/ciúme só que na perspectiva feminina? Lanço-te esse desafio hauhauahua. Adorei o texto!
P. S.: fiquei com vontade de comer o pão de queijo do Dal! ;)

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