Lourdes despertava
assustada e inquieta, ao cacarejar do galo, todos os dias de sua miserável
vida. Banhada de suor no seu barraco quente e úmido, com aquela dor de cabeça
antecipada e a vontade de dormir eternamente. Antes de sair, arrumava, com
demasiado zelo, a casa e o almoço. O picadinho com batatas, muito cheiro-verde
e nervo de carne de terceira, a melhor refeição da semana, que geralmente
restringia-se a conservas, ovo e salsicha, era cozinhado com muito esmero e
carinho. Dormia pouco – antes de repousar, sempre lia o Salmo 91 e fazia suas
orações. O cansaço era uma dura herança ancestral, um fardo intolerável que a
sua condição feminina suportava, como se fosse uma mártir em uma multidão de
mártires desvalidos, uma horda de vencidos, aqueles ombros que carregam a ordem
social, encerram fileiras do mesmo lugar no mundo. Mais uma segunda-feira, mais
uma enfastiosa semana, amanhecem no Tapanã.
Ouvem a mesma música,
compram no mesmo supermercado a crédito, bebem a mesma cerveja, fumam o mesmo
cigarro, fodem da mesma forma, todos tem a mesma vontade de ganhar na loteria,
querem ser celebridades da televisão, sobrevivem sob o mesmo sol que tosta a
pele, inalam a mesma poluição que apodrecem os seus pulmões, agradecendo a Deus
pelo salário mínimo, frequentam a igreja todos os domingos, fazem suas meia
dúzia de rezas, pagam seu dízimo mensal, morrem nas horrendas filas de hospital;
esta vida feliz tem nas batidas, no treme-treme, na dança frenética do
tecnobrega, a trilha sonora de amor e de morte.
O almoço era única
alimentação do dia dos filhos e do marido desempregado. Há seis meses é do
fruto do seu suor diário que se sustenta a casa. O marido não podia mais
trabalhar como pedreiro, vitimado por um derrame. Ele aprendeu com destreza os
penosos afazeres domésticos: cozinhava bem, lavava mais ou menos, passava mal e
limpava razoavelmente. Sentia-se um pouco humilhado por não fazer seu papel de
macho e prover o sustento. Resignado, apoiava a mulher em tudo. Deixou de
beber, de fumar e de madrugar. Abandonou as amizades de mesa de bar e do samba.
Pontualmente, Lourdes
embarcava no ônibus das quatro horas da amanhã. Depois, o das sete horas.
Chegava sempre às nove horas ao trabalho.
A casa de uma de suas
inúmeras patroas ficava no centro da cidade.
As pernas cansadas pela
artrite, as costas doendo pela hérnia de disco, um pouco de torcicolo, no mesmo
velho ônibus desconfortável e lotado, na companhia de dezenas de trabalhadores.
Aquele odor acre de suor, poeira, fumaça e perfume barato formava uma massa
gasosa que lhe provocava uma profunda náusea. Devido a uma toalhinha gasta, em
farrapos, que embebia de perfume, livrava-se do suor e daquele odor,
conseguindo aguentar a viagem até o fim. Ela agradecia a Deus por vir sentada.
Isentava-se dos suplícios da corrida a pé. Calor, aperto, muita gente com o
mesmo objetivo: sobreviver. Dava Glória a Deus e Aleluia toda vez que descia do
ônibus. Mais uma viagem vencida. A vida era feita de pequenas batalhas, era
necessário pelejar para alcançar a vitória – dizia seu o pastor nas pregações
dominicais.
Dois quarteirões
necessitavam ser vencidos a passadas ora rápidas, ora vagarosas de pernas velhas
e enfastiadas para alcançar, como se fosse uma missão dos escolhidos, a
primeira casa do dia. Passava pela mesma calçada, desalinhada, esburacada,
entre chão de terra e concreto quebrado, com mato rasteiro denunciante do
abandono, era seu caminho tranquilo. Cantando hinos da harpa cristã na sua
mente fadigada, que apenas processava as funções vitais para mantê-la viva.
Essa espécie de mantra cristão lhe trazia profundo alento. Ela estava em
contato com Deus.
Contudo, nesta
segunda-feira, chegou atrasada pela primeira vez naquele mês. O seu relógio,
daqueles importados made in china,
com prazo de validade, comprado no ver-o-peso à custa de uma boa pechincha,
marcava dez horas da amanhã. Já ensaiava em sua cabeça a desculpa que ia dar,
não teve muito trabalho, diria apenas a verdade: o trânsito. Ouviria a mesma
resposta implacável de sua patroa: saia mais cedo, cumpra seu horário.
“Bom dia, dona Lourdes.
Mais uma vez atrasada. Não vou mais tolerar isso. Eu faço o favor de te dar
emprego e abusas da minha boa vontade. Toda vez é a mesma desculpa. ‘Trânsito,
trânsito, trânsito’. Sabes que tens horário a cumprir, pensas que o mundo gira
ao teu redor? E não me olhe com esses olhos de pobre coitada, a minha paciência
se esgotou. Cansei da tua preguiça, sua favelada, morta de fome! Sua vagabunda
que abusa da minha paciência e caridade! Não vou mais tolerar isso. Tu estás
despedida! E não me peça referência e nem nada. Se qualquer pessoa vir me pedir
referência, vou-te desindicar como preguiçosa e não cumpridora de horários, que
vive dando desculpas e querendo tirar proveito da sua pobreza pra atrasar a
vida dos outros. Cansei, não tenho mais tempo a perder com a sua insignificante
pessoa e seus parcos e sofríveis serviços”.
A patroa de Lourdes
vocifera isso aos berros ficando vermelha e com a boca seca. Seus olhos
vidrados expressavam toda a histeria do seu corpo. A sua estirpe de mulher de
classe média, na meia idade, professora universitária, nascida em berço de ouro
e bem educada, luxuosamente maquiada, roupas de grife, cabelo bem cortado,
unhas feitas, não justificava, nem quiçá explicava, aquele tipo de
comportamento. Não era de bom tom tratar a criadagem assim. Lourdes ouviu a
tudo calada e com o olhar altivo. Pensava: “Senhor me livra e me guarda debaixo
do teu sangue, contra todo mal e contra todo perigo”. E disse de maneira
amável, humilde e resignada:
“Desculpe, patroa.
Desculpe o atraso. Não queria causar problemas. Espero que Deus entre em sua
vida e a transforme em uma nova criatura em Cristo. Deus lhe abençoe, tu e a
tua casa”.
A patroa olhava-a com
um rosto desfigurado pelo asco e pela insolência daquela mulher que julgava ser
um pobre diabo analfabeto que dependia de seus favores. Lourdes virou de costa,
vagarosamente dirigindo-se para a porta, culpando-se pelo atraso,
interrogando-se se havia feito alguma coisa errada em sua vida, se este fato
era resultado de algum pecado, alguma maldição, algum provação de sua fé, algum
castigo divino. Lágrimas escorriam sobre as maçãs ressecadas do seu rosto, que
prontamente limpava – não gostava que a vissem chorar. Era frágil. Mas não uma
pobre coitada. Seu pranto representava resignação e expiação. Deus tinha algo
melhor para a sua serva – esta ideia domina seus pensamentos. Os planos divinos
são mais altos e misteriosos que a sua limitada vontade humana – lhe
reconfortava diante de mais uma derrota.
“O Senhor é meu pastor;
nada me faltará” – acalmou-a, dando-lhe refrigério na alma.
Quando, subitamente, na
fração de segundo própria das situações trágicas, um ataque fulminante do
miocárdio acometeu o coração fumante de décadas e décadas de sua patroa. Ela
tombou inerte no chão, com as duas mãos à altura do peito, lutando contra
aquela dor mortal. Lourdes ouviu o barulho de algo caindo no chão. Virou-se e ficou
olhando com um olhar sereno e impassível o sofrimento terminal da patroa. Ela
lutou dez eternos minutos contra aquele dor. Seu corpo sem vida ficou estirado
no chão. Um leve sorriso de felicidade e contentamento tomou conta do rosto de
Lourdes, que imediatamente ligou para a ambulância, para a polícia, para os
bombeiros, para quem fosse. Estavam somente as duas em casa. A ambulância
chegou depois de meia hora.
Por sua vez, o que lhe
vinha a mente era apenas o tema da pregação do dia anterior, baseado no texto
de Romanos 12:19, que diz:
“Não vos vingueis a vós
mesmos, amados, mas daí lugar à ira, porque está escrito: Minha é a vingança;
eu recompensarei, diz o Senhor”.
“Glória a Deus e
Aleluia!! Tu falaste com a tua serva! Tua é a vingança, Senhor! Tua é a
recompensa!” – dominava os pensamentos de Lourdes.
Ela sentia a presença
de Deus no seu coração.