segunda-feira, 25 de junho de 2012

América do Sul





Ontem escrevi o meu primeiro texto na máquina de escrever. Foi um pouco difícil. Duas laudas com as trivialidades que escrevo. Uma história triste com final ruim. Mas foi prazeroso. E um exercício importante. Na máquina é mínima a possibilidade de erro. Consegui organizar melhor o pensamento e escrever de um fôlego só. Aliás, tenho a impressão de que escrever na máquina torna a escrita mais real. Nos últimos tempos tenho procurado o real na ficção. Abandonei a academia.  Ostracismo voluntário. Por mais que eu gostasse daquele ambiente – das discussões, dos estudos, enfim - não me via mais representado junto àquelas disputas mesquinhas e debates sobre qualquer coisa, menos o real. Prefiro a literatura. Ela é muito mais real pra mim. Uma unha encravada. Cheia de pus, dedo roxo, unha quase caindo. Puta que pariu, como essa porra dói, nunca mais corto a unha na pressa, aquele unhex todo cego, é isso que dá deixar tudo pra cima da hora. É Jorge, tem que se fuder mesmo; agora aguenta, viadinho. Só os gordos sabem da missão hercúlea que é cortar a unha do pé, ou amarrar os sapatos. Porra, eu estou ficando muito gordo, daqui a pouco não vou ver nem meu pau mais! Toma jeito, Jorge, toma jeito. Mas quando pensava nisso, ficava tranqüilo; ela aceitava suas imperfeições, ela o amava. Ele a amava. Coriza, sinusite, renite, poeira, pó, fumaça, nariz em desgraça, aquela edição antiga, comprada semana passada num sebo qualquer; folha amarela, capa solta que colou com fita durex - cinco reais, uma pechincha, não podia passar. Foi todo o dinheiro do ônibus, voltou andando para casa. Ele precisava mesmo, sedentário mórbido. Estava feliz pelo livro, a caminhada compensou, ficou até mais tarde ontem lendo – “Dias na Birmânia”. Égua, Orwell é um cara admirável, um cara que nasceu raro, um daqueles escritores que dá vontade de ler toda a obra. Pendurado no cheque-especial. Deve cinco mil reais no cartão de crédito. Luz, água, telefone, atrasados. Porra, eu queria ter nascido na primeira metade do século XX, ter vivido naquele tempo, viver duas guerras mundiais, uma guerra fria, matar filhos-da-puta, ter levado um tiro, talvez me fizesse mais homem, e não esse pária frouxo que eu sou. Morava só. Formado em Filosofia. Trabalhava na prefeitura, auxiliar administrativo - dois salários mínimos. Quatro anos lendo os primores do pensamento humano, conclusão: o amor à sabedoria não paga contas. Kant foi uma das maiores perdas de tempo na minha vida. Apesar de tudo, Jorge era feliz. Estava lendo Orwell e amava perdidamente sua namorada. Conheceu-a nas filas do R.U. Ele estava concluindo, ela era caloura em Metereologia. Apaixonou-se de primeira. Três meses depois, estavam namorando. Ela foi difícil. Ele teve o prazer da conquista. Ela cedeu pela insistência e inteligência. Isso faz dois anos. Depois que se formou, saiu de casa, queria ser independente, dar aula, viajar e ser escritor. Enviou currículos, pediu indicações, nada. O amor ao pensamento era desprezado no país de Sarney. Sócrates se exilaria para o Hades. Fez o primeiro concurso que apareceu. Passou. Sua vida era dedicada a seis horas de trabalho, dois dias de trabalho em um cursinho pré-vestibular na periferia. Ler, escrever, beber e amar Walquíria. Às vezes saía com Marcelo, seu amigo dos tempos da faculdade – um dos seus raros amigos. Com ela, tudo era sinônimo: alegria, felicidade, contentamento. Apesar de naturalmente triste, ela era sua alegria. Marcelo era seu chapa, aquele cara que sempre podia contar, apesar de alguns hábitos estranhos, como gostar muito de futebol e colecionar camisa de time. Estranho, mas legal. Vez por outra, ele quebrava uns galhos para Jorge, por exemplo, uma vez ele ficou doente e não teve como ir dar aula no cursinho; prontamente Marcelo resolveu. Enfim, era aquele cara que podia se contar. Ele namorava com a Jéssica, uma amiga da Walquíria. Jorge não a conhecia muito bem. De quando em quando, saíam os quatro juntos. Era divertido. Mas Jorge gostava mesmo era de sair apenas Marcelo e Walquíria. Isoladamente, é claro. Percebia que quando saíam os três, havia algo de estranho que ele não sabia explicar, mas algo de estranho acontecia. Jorge nunca se perguntou mais afundo o razão deste mal-estar. Deixou pra lá. Estava feliz. Amava Walquíria, e ela o amava. E estava lendo Orwell. Marcelo, tens que ler George Orwell. Ele é um cara admirável. Nunca vi ninguém escrever algo tão real, tão verdadeiro, tão próximo de suas crenças pessoais. Um cara que sempre procurou ter uma postura renitentemente honesta e decente. Conversa de bar, duas cervejas. É mesmo, Jorge, já vens um tempo falando dele mesmo; quando terminar, me empresta. No momento, não estou lendo nada, o meu tempo todo está sendo dedicado a planejar aula e corrigir prova, uma merda. É, rapaz, uma merda mesmo, suga todo o teu tempo livre; por falar nisso, essa é uma coisa que tenho pensado ultimamente: cada vez mais temos perdido nosso tempo livre, percebeste que nunca temos tempo para fazer o que realmente gostamos? Vivemos sempre em função de carga horária de trabalho. Rapaz, isso não é vida. Cara, é isso mesmo, foda mesmo, mas é necessário sobreviver, ganhar esses trocados e tocar pra frente. Outra coisa que tenho pensado muito, Marcelo, é sobre honestidade. Cara, o Orwell tem me feito pensar muito sobre isso, sabe, de ser absolutamente honesto em tudo na tua vida, de ir contracorrente mesmo. É, Jorge, concordo contigo, o foda é que tens tempo para pensar, nem isso eu estou tendo; tenho vivido no automático ultimamente. Tu, eu e o resto da humanidade, pelo visto. É. Garçon, bote mais uma aqui. A vida seguia seu transcurso natural. Apesar das reflexões, Jorge considerava-se feliz. Ele amava Walquíria. Toda vez que se sentia triste, era só pensar nela, e tudo ficava melhor. Ele sempre lembrava um trecho de Sófocles, de uma obra que sempre esquecia, que dizia que o único alívio para a dor e o sofrimento inerentes a existência era o amor. Isso fazia muito sentido para ele. Jorge estava juntando um dinheiro. Planejava há três anos uma viagem pela América do Sul. Queria dar de presente no aniversário de Walquíria. Os dois locos pela America. Para isso, privou-se de várias coisas - economizava nos mínimos detalhes, compra tudo mais barato, até a cerveja. Ela ainda morava com os pais, mas tinha a chave do apartamento de Jorge. Praticamente viviam juntos. Depois da viagem, ele pretendia pedi-la em casamento. Ele era um cara tradicional em algumas coisas, queria ter família e filhos. Não há sabedoria no que penso, no que digo, no que escrevo. São apenas devaneios. São apenas escritos à marteladas cingidas pela minha obscura consciência. O sentimento amoroso é uma das maiores razões da ruína de um homem. A sua derrocada completa estava assentada no contentamento do amor. O ocaso em acreditar-se feliz. O desespero da paixão fazia-o viver, pleno, vigoroso, atento. Ele estava amando. Ela foi a sua derrocada. Égua, acho que isso tá ficando bom, está melhor que aquele que escrevi outro dia; de qualquer maneira, serve para exercitar o pensamento nas teclas. Tenho que comprar óleo lubrificante, estas teclas são duras que nem o diabo. Péssimo dia de trabalho, não via a hora de chegar em casa, comer, tomar banho, descansar um pouco, ligar para Walquíria, saber do seu dia, da sua vida, e escrever alguma coisa para ela. Seria seu primeiro texto sobre amor. Por sorte, fora liberado mais cedo no trabalho. A porta estava aberta. Walquíria estava em casa. Uma surpresa. No quarto, ela estava arrumando suas coisas, estava indo embora da sua vida. Desculpe, Jorge, estou indo embora, estou apaixonada por outro cara, um professor da faculdade - um homem de verdade, adeus. Ela saiu, sem dizer mais nada. Ele ficou sem entender porra nenhuma. Resignou-se. Tomou uns porres. Falou com o Marcelo. Ele, como amigo, aconselhou: isso acontece, esquece isso, bola pra frente, é assim mesmo. Passou um mês. Ela se arrependeu, viu a merda que fez, foi chutada pelo cara mais velho. Usada, sentiu saudade de Jorge e percebeu a dimensão do seu amor por ele. Quando entrou em contato, ele já estava no exílio. Agora eram só ele, a máquina de escrever e a América do Sul.

1 comentários:

Anônimo disse...

Exílio na América do Sul.
Sensato.

Nicoly Uchôa.

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