Era um tigre já velho, cercado de
tigresas e dono, por seus próprios dentes e garras, de uma savana inteira que
se estendia por todos os horizontes, num desses lugares da África onde o tempo
passa, indômito, em ventos à oeste, à leste, ocasos rubros e cheiro de vida.
Deitado numa rústica e confortável
cama de ramos secos, ele passava seus dias contemplando com qualquer sentimento
indiferente seus domínios do alto de uma pequena elevação na planície
amarelada. Entre as refeições, caçadas e servidas pelas fêmeas, ele dividia sua
vida de emir em frações de coitos e passeios, não muito longos, pelas
imediações. Caminhava por seu reino para se convencer de que ainda estavam lá
as coisas que deixara quando ia se deitar. E assim os anos foram embora.
Um dia apareceu outro tigre. Não
era nenhuma novidade que aparecessem outros tigres: assim o velho forjara seu
pedaço de mundo: hostilizando, trucidando e entregando outros, fortes e fracos,
aos abutres e hienas. Deles havia um monte de ossos, brancos, no canto onde as carniças
eram abandonadas, quando já não havia nada que aproveitar, fosse pelos bichos,
fosse pelos vermes. Os restos ficavam lá, sem que ninguém os fosse recolher,
porque não há isso entre os tigres, a necessidade enterrá-los – para os tigres,
ossos são ossos. A África parecia não se importar também.
O tigre veio caminhando,
francamente anunciado pelo seu andar pesado, pata a pata a pata a pata, sem
pressa, sob os olhares apreensivos das tigresas e a indiferença do velho, que
não sabia se cochilava ou se abria um sorriso de todos os seus dentes
rasgadores de carne. Num relance, seus olhos viram dezenas de ocasiões como
aquelas, das quais sempre saiu vencedor, e agora estava aqui, dono de tudo.
Despreocupado, porém alerta, acompanhou a caminhada do outro, enquanto um
gigante soprava, fazendo com que a relva remexesse, como os cabelos loiros de
uma albanesa. O tigre se aproximava.
Até que se colocou em frente ao
velho.
- Que bons ventos o trazem? -
perguntou o tigre, deitado em sua paz.
- Nem bons nem ventos. Venho para
ficar com tudo que tens – disse, sério, o outro.
- Estás vendo aquela bagunça, alva
como marfim, ali? - interrogou, sorrindo, o velho e apontou com sua pata pesada
os ossos.
- Vejo.
- Então tens bons olhos – gracejou
o velho, e todas as tigresas riram, tensas, em miados selvagens.
O tigre que chegara não se fez
prosternou, no entanto: permaneceu lá, rígido, com um semblante calmo,
transbordando de certeza. A África sussurrava seus segredos nos ouvidos dos
bichos, que os entendiam, todos. O vento parara.
- E medo, tens? - quis saber o
velho.
- O senhor bem sabe que aos tigres
não é permitido o medo – sentenciou.
- Se cheguei até aqui é porque
nunca o tive, mas sempre o cultivei próximo a mim. Fosse nos que me cercavam,
fosse no sangue que provava, sempre tive o medo em algum lugar ao alcance da
vista, para não me esquecer de como era.
- Falas muito, velho.
- Vi e vivi e matei muito mais,
rapaz.
- E vais chegar ao fim, como tudo.
O velho tigre levantou-se e
sacudiu-se, para que a preguiça saísse de seu grande corpo. Entre as tigresas
houve um pequeno murmúrio, que logo foi abafado. Um elefante soprou seu
saxofone num extremo da savana. O velho então olhou para cima, para o céu, o
mesmo céu, incandescente teto azul, dourado num ponto. Baixou a cabeça. Se era
preciso, que fosse feito.
- Rapaz – e isto disse o velho
tigre com os olhos injetados nos do outro – vou te fazer uma pequena concessão:
vamos conversar.
- Sabes bem o costume, velho. Não
podes fugir ao teu destino. Somos nós dois aqui na savana, e só um de nós
ficará de pé – retorquiu o outro tigre.
- Sei disto, rapaz, mas não te
apresses, que o mar é muito para poucos dias. De onde vens?
- Venho do vale, depois dos
precipícios.
- Vens de onde nasce o rio que os
que andam em pé chamam de Nilo, então – disse, animado, o velho tigre, que
ouvira falar do famoso rio.
- Sim – confirmou o tigre, o
semblante levemente comprimido de ansiedade. Era um tigre, bem novo, com os
olhos vivos de quem andara por vários chãos.
- E como é a tua terra? -
interessou-se o velho.
- É cheia de chuva e tem todos os
cheiros e no rio os barcos aportam num cais onde há um mercado de peixe. - o
tigre pensou um pouco mais e se esforçou para recompor um quadro distante - É
cheia de florestas.
O velho tigre achou graça, no que
foi seguido pelas tigresas, que permaneciam tensas, esperando o próximo ato.
Havia nascido na savana, e nunca havia saído dela. Aprendera cedo a ser o tigre
que era, e a reinar. O sol esquentava tudo.
- E como chegastes aqui?
- Caminhei. Subi serras e
atravessei os sertões. - o tigre já estava impaciente. - Já passa do tempo,
velho.
- Calma, rapaz – disse o velho
tigre, olhando para longe - Engraçado este nome, Nilo. Para os tigres nada tem
nome, nem o Nilo, nem eu, nem tu, nem estas fêmeas aqui, ou estes campos, ou os
sons que nele nascem e morrem. Não há necessidade de dar nome ao mundo quando
vivemos, matamos e morremos nele, quando somos parte dele e não queremos que
ele se curve a nós. Pobres diabos são esses que perdem suas vidas com palavras
e guerras e ferramentas, e esquecem dos horizontes.
- As verdades dos homens, velho,
não são as mesmas dos tigres. Também nós resolvemos com sangue nossas vidas.
- É isto que queres resolver?
Usurpar meu reino? Um monte de terras, caça farta, todas as tigresas em que
puderes montar? É isto que te traz até aqui, longe da tua terra, do ar das
florestas, dos lagos, de tudo?
- Não, velho, não quero discutir
meus motivos. Tudo que é teu será ainda hoje meu. É a sorte de todo tigre e de
todo reino, esta é a regra da vida. Eu vou te suceder até que me venham matar,
e assim o mundo corre.
O velho tigre então baixou a cabeça
e viu a África sob suas patas. Não há mais futuro nas borras de café do que no
chão seco e pedregoso de uma savana. Respirou, e o ar lhe refrescou o corpo por
dentro. Olhou o outro e disse:
- Vieste do vale. E tinhas o mundo,
rapaz.
*
Bicos disputam pedaços de carne
cada vez mais escassos, e há moscas zumbindo em toda parte. As tigresas
assistem ao epílogo de longe, umas deitadas, outras sentadas. O vento agora
sopra novamente, quase leve, pois o gigante está cansado e a albanesa, de
cabelos um tanto presos. Saxofones do outro lado, um tiro de espingarda. Uma
cabeça felina, arrancada do pescoço a dentadas, jaz num canto, sobre o mato
ralo, intocada pelos bichos. Talvez as hienas e os chacais briguem por ela
quando a noite chegar, fria, a este lugar.
Um velho tigre caminha a passos
arrastados na direção oposta do seu recanto. Está cansado e cheio de
machucados, arranhões e marcas de dentes, vestígios mortais de um violento e
recente embate. A carne rasgada não o incomoda, no entanto. Tosse e escarra
sangue na relva que cobre a savana, e sabe que este passeio será só de ida, o
último por um reino que é cada vez menos seu. No gosto metálico que paira em
sua língua sente falta de algo e sorri, combalido pelos ferimentos. Nunca tomou
este caminho, mas o conhece bem, de vista, do alto de seu conforto, e após
muito caminhar a savana finalmente acaba e só há um imenso abismo de bordas pedregosas,
onde ele se encosta para descansar. Está exausto.
Abaixo, há uma grande planície
seca. Além dela, numa montanha que o tigre enxerga, azul, um rio nasce sem
pedir permissão a ninguém. Como os bravos.
(Igor Farias)
(*) Mais um texto deste puto que
insiste em ser colaborador deste blog. Obrigado, rapaz.
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