Havia um copo de
cerveja em minha frente, meio vazio, meio cheio. Era a síntese da minha vida. É
tudo mais ou menos desde a pré-história da minha humanidade. Enquanto houver
cerveja, cigarros e um pouco de saúde, a vida sempre vale a pena. Tenho
pensando ultimamente nisso, se a vida tem valido a pena, parece que sim, até o
momento. A vida tá bacana, sem problemas, tomando uma cerveja e preguiça de
viver.
Estava menstruada.
Realmente deus demonstrara toda a sua truculência com esse castigo por um ato
de independência. Toda subversão será castigada – o único mandamento com
promessa. Queria trocar o absorvente, porém o banheiro é um lixo. É foda beber
em pé sujo, cerveja barata é diretamente proporcional a condições insalubres no
banheiro. Ainda bem que sempre levo absolvente e papel higiênico. Não é
higiene, é sobrevivência mesmo. Não é frescura, é preservação. Detesto sair de
casa neste estado.
Este é um dos
inconvenientes de ser mulher. Os outros são: viver numa sociedade machista e
não ter um falo, ter a obrigação de ser mãe, viver como esposa e morrer avó.
Não preciso me designar de vadia para foder com quem quiser, me vestir da
maneira que quiser e ser independente de qualquer homem, antes disso trabalho e
estudo, antes disso pago as minhas contas. O resto é vadia com discurso
político vazio. Vazia, vadia. Sou prática. Prezo pela autodeterminação de ser
mulher independente a Beauvoir.
Estou com um grupo de
amigos no bar que sempre frequentamos. A conversa é sobre várias coisas. Fico
feliz de encontrar pessoas queridas. Realmente queridas. Elas são cada vez mais
raras. Parece que o mundo habitável resume-se a esse tipo de pessoa. Estou
ficando cansada. Um sono leve começa a flertar comigo. É aquele leve torpor
alcoólico de alegria, fome e cansaço que faz feliz quem bebe. Felicidade
instantânea, momentânea e cada vez mais contemporânea. O mundo dos pixels
legais do Instagram.
Até o momento que ele
chega. Um cara estranho que estava transeuntando anônimo, incógnito, invisível
no meio da multidão, se aproxima da mesa com feições humanas – ele tinha barba,
por essa razão que considerei humano, humano bonito. É apenas mais um cara,
pensei. Ele é amigo do pessoal da mesa. Conheço de vista. Junto a metade da
população de Belém de semi-conhecidos. Estava a fim de sair fora. Comer alguma
coisa e ir pra casa e curtir a minha embriaguez dormindo. Estava ficando tarde,
ônibus é foda.
Mas aí, ele chegou.
Porra, ele inviabilizou a minha saída. Tinha que dar mais um tempo. E isso é aquele
tipo de regra social que ninguém explica, apenas se sabe e é necessário
cumprir, ainda mais entre pessoas queridas. Fiquei mais um pouco. Tive que
ouvir o papo dele. Limitei-me a ouvir a conversa com o pessoal da mesa.
Começaram a falar de trabalho, que ele era professor, que mesmo com os
problemas, ele gostava de dar aula e blábláblá. Grandes merdas ser professor.
Um dia vou ser uma, então, não quero adiantar sofrimentos. Melhor nem pensar
nisso. Preocupações desse tipo dissipam-se na ebriedade. Nesse ínterim, olhava
o vazio da vida curtindo a minha embriaguez risonha.
Depois, falaram
basicamente de literatura, música e cinema. Não era nenhuma novidade o que ele
falava, mas a maneira como ele falava era simplesmente contagiante, com
sinceridade, detalhe, honestidade e paixão. Apaixonante, diria. Dissertou
longamente sobre literatura russa, que os Karamazóvi era a melhor obra escrita
por mãos humanas. Interessei. Gosto de literatura russa. Pensei em testá-lo e
testei. Perguntei se ele sacava Soljenítsin. Queria ver se ele era bom mesmo.
Se não era papo furado. Papo de orelha de livro. Detesto gente idiota
disfarçada. Literatura russa é fácil. E Literatura soviética?
Assombrosamente, ele
respondeu que sim. Citou toda a obra dele e disse ter lido “Um dia na vida de
Ivan Denissovich”, que ficou apenas nela, mas tinha vontade de retomar a
leitura das demais. E citou ainda outros três escritores soviéticos
dissidentes: Vassili Grossman, Vladimir Voinovich e Boris Pasternak. E que
adorava as poesias da Anna Akhmatova. “Canção de despedida” era sua poesia
favorita, ao lado de “Réquiem”, mas gosta mais da primeira, porque conseguia
contemplar a beleza e sinceridade na tristeza.
Caralho, ele não é
foda, é um filho da puta. Sim, somos cultizinhos de merda. Foi aí que a porra
aconteceu. Puta que pariu, me fodi. Sei lá, alguma coisa aconteceu quando
comecei a ouvir com atenção o que ele falava. Fisiologicamente, alguma coisa
aconteceu. Comecei a suar, e ficar meio enjoada, e o coração a disparar. Que
porra adolescente era aquela. Respirei fundo. Tomei mais um gole de cerveja.
Calma, calma.
E vi com quase lágrimas
nos olhos um sentimento estranho queimando em minhas entranhas. Tudo nele era
bonito, simples, encantador. Fiquei imaginando como seria beijá-lo e sentir o
bigode dele desferindo carinhos em minha face. A maneira como ele limpava o
bigode cheio de cerveja. O modo como ele olhava interrogativamente,
perscrutando em todos o que ele estava falando, dominando a conversar com tom
professoral. Aquilo que poderia parecer pedante e chato era simplesmente
encantador.
Neste momento, naquela
mesa, eu estava totalmente ausente, inerte, esfumaçada. A inteligência dele
começou a dialogar com os meus sentimentos que estavam brotando, aquelas idéias
e a paixão com que eram proferidas foram jorrando água fresca e cristalina
sobre as sementes de bem querer que estavam a semear um terreno abandonado no
meu coração. As estepes siberianas do meu coração estavam em degelo.
Fitava a boca dele e da
mesma maneira com que ele vocifera idéias, queria que ele vociferasse os meus
seios, com a violência peculiar dos atos amorosos, língua e lábios chupando
meus mamilos, sentindo o leve, mas violento roçar do seu bigode sobre a minha
pele branca, que machucada com tão firmes carícias, avermelhada a testemunhar
os benefícios do amor físico. O meu corpo dominando cada ato, objeto submetendo
o sujeito. É a melhor e mais inteligente forma de dominação. É a minha forma de
dominação.
Simultaneamente, esta
mesma boca vociferante desce pelo meu ventre guiado pela língua, sentindo o
cheiro do meu corpo entregue, até chegar ao meu jardim habitado por uma única
rosa vermelha, e experimento bem devagar, bem lentamente e suave o seu
desfolhar pela boca vociferante, transformando os seus lábios em fiéis vassalos
do meu prazer. Ao mesmo tempo, subitamente, sem ser convidado, mas amplamente
desejado, venha seu pau transgressor devassar o meu jardim, destruí-lo com
fortes e renitentes atos de transgressão que apenas o meu corpo perdoa. Se ele
não soubesse fazer nada disso, não há problema, teria prazer de ser
pacientemente sua professora, instruindo em cada detalhe, ensinando todos os
movimentos, educando de acordo com as demandas de cada centímetro do meu corpo.
Sei que ele será um bom aluno. E eu uma diligente professora.
O devaneio dissipa-se
com mais um pedido de cerveja. Que calor estava fazendo esta noite. Observo com
interesse, e ele me saca. Sacou e gostou. Um sorriso tímido, despretensioso, de
quem não saber do que é capaz de provocar. Caralho, como o sorriso dele é
encantador. É de dar raiva, por ser totalmente irresistível. Sei que ele é
inteligente. Beleza. Será que ele fode melhor que o Armando? O Armando é
legalzinho.
O Armando fode bacana,
tem um papo legal e dá para o gasto. Embora não saiba foder um cu. Ele tem cara
de quem sabe chupar gosto. Todo cara de barba sabe chupar gostoso. Pensado
melhor, ele é muito magro. Não gosto de gente muito magra, tem feição de
doente. Ele não deve fazer pressão. Foder com força, me pegar de jeito, com
umas boas tapas. A violência inerente a qualquer ato sexual. O Armando é fraco,
fode gostoso, mas é fraco. Ele é magro, mas deve dá conta. As mãos dele são
grandes. Gosto de homem com mãos grandes, eu aprecio um carinho pesado, forte,
robusto. Desejei que ele descobrisse de maneira delicada cada parte recôndita
do meu corpo, que decifrasse o meu enigma carnal, a partir das disposições do
seu espírito, o calor dos seus beijos, o afagar da sua barba, entre as minhas
pernas, nas minhas nádegas, no meu pescoço, como um processo judiciosamente
científico de descoberta do meu gozo e satisfação.
Agora, nada mais me
importa. Ele tem que ser meu. Tudo o que ele representa e todas as sensações e
sentimentos que ele provoca em mim tem que ser minha propriedade. Não tem mais
volta. Já sinto até a dor de que isso não seja possível. Merda, como é lindo
isso, de se sentir atraído por alguém que tu não conheces, não sabe nada a
respeito, mas os indícios físicos e espirituais do que aquele ser representa,
repercutem em ti de uma maneira instantânea e avassaladora, uma vez sentido
isso, se é prisioneira de tal deleite. Um cárcere voluntário em que a chave
está em suas mãos. Os grilhões invisíveis dos sentimentos. Algemas e chaves nas
tuas mãos. Como é doce ser prisioneira de uma paixão. Qualquer paixão me
diverte, eu dizia. Agora é irremediável: sou prisioneira dele.
Copo cheio, uma golada.
Preciso ir embora. Já não aguento ficar na presença dele, ele me domina, me
machuca, me invade, me sufoca de tanta fascinação. Aquela língua me fodendo. Aquela
boca me chupando. Aquele pau me deflorando. As mãos grandes fazendo carinho nos
meus cabelos e lendo Akhmatova com a mesma paixão que trata dos Karamazóvi.
Sentir afagosamente os carinhos do seu bigode por todo o meu corpo.
Pergunto quanto fica minha parte na conta, e pago. Levanto, me despeço de todos e vou embora. Claro
que dele também. Eu precisava sentir o cheiro dele. Uma mistura de perfume e
suor, com cerveja e cigarro. Um inebriante cheiro de homem boêmio. Quando olho
para trás, vejo o olhar dele, perscrutando o meu corpo, perscrutando o meu
espírito. Não sei se houve algo de transcendental. Ou só se foi o álcool e a
fome. Quem sabe. Isso aconteceu ontem. Mas senti o doce hálito de tabaco
preencher o meu vazio.