terça-feira, 21 de maio de 2013

Qualquer paixão me diverte, eu dizia.





Havia um copo de cerveja em minha frente, meio vazio, meio cheio. Era a síntese da minha vida. É tudo mais ou menos desde a pré-história da minha humanidade. Enquanto houver cerveja, cigarros e um pouco de saúde, a vida sempre vale a pena. Tenho pensando ultimamente nisso, se a vida tem valido a pena, parece que sim, até o momento. A vida tá bacana, sem problemas, tomando uma cerveja e preguiça de viver.

Estava menstruada. Realmente deus demonstrara toda a sua truculência com esse castigo por um ato de independência. Toda subversão será castigada – o único mandamento com promessa. Queria trocar o absorvente, porém o banheiro é um lixo. É foda beber em pé sujo, cerveja barata é diretamente proporcional a condições insalubres no banheiro. Ainda bem que sempre levo absolvente e papel higiênico. Não é higiene, é sobrevivência mesmo. Não é frescura, é preservação. Detesto sair de casa neste estado.

Este é um dos inconvenientes de ser mulher. Os outros são: viver numa sociedade machista e não ter um falo, ter a obrigação de ser mãe, viver como esposa e morrer avó. Não preciso me designar de vadia para foder com quem quiser, me vestir da maneira que quiser e ser independente de qualquer homem, antes disso trabalho e estudo, antes disso pago as minhas contas. O resto é vadia com discurso político vazio. Vazia, vadia. Sou prática. Prezo pela autodeterminação de ser mulher independente a Beauvoir.

Estou com um grupo de amigos no bar que sempre frequentamos. A conversa é sobre várias coisas. Fico feliz de encontrar pessoas queridas. Realmente queridas. Elas são cada vez mais raras. Parece que o mundo habitável resume-se a esse tipo de pessoa. Estou ficando cansada. Um sono leve começa a flertar comigo. É aquele leve torpor alcoólico de alegria, fome e cansaço que faz feliz quem bebe. Felicidade instantânea, momentânea e cada vez mais contemporânea. O mundo dos pixels legais do Instagram.

Até o momento que ele chega. Um cara estranho que estava transeuntando anônimo, incógnito, invisível no meio da multidão, se aproxima da mesa com feições humanas – ele tinha barba, por essa razão que considerei humano, humano bonito. É apenas mais um cara, pensei. Ele é amigo do pessoal da mesa. Conheço de vista. Junto a metade da população de Belém de semi-conhecidos. Estava a fim de sair fora. Comer alguma coisa e ir pra casa e curtir a minha embriaguez dormindo. Estava ficando tarde, ônibus é foda.

Mas aí, ele chegou. Porra, ele inviabilizou a minha saída. Tinha que dar mais um tempo. E isso é aquele tipo de regra social que ninguém explica, apenas se sabe e é necessário cumprir, ainda mais entre pessoas queridas. Fiquei mais um pouco. Tive que ouvir o papo dele. Limitei-me a ouvir a conversa com o pessoal da mesa. Começaram a falar de trabalho, que ele era professor, que mesmo com os problemas, ele gostava de dar aula e blábláblá. Grandes merdas ser professor. Um dia vou ser uma, então, não quero adiantar sofrimentos. Melhor nem pensar nisso. Preocupações desse tipo dissipam-se na ebriedade. Nesse ínterim, olhava o vazio da vida curtindo a minha embriaguez risonha.

Depois, falaram basicamente de literatura, música e cinema. Não era nenhuma novidade o que ele falava, mas a maneira como ele falava era simplesmente contagiante, com sinceridade, detalhe, honestidade e paixão. Apaixonante, diria. Dissertou longamente sobre literatura russa, que os Karamazóvi era a melhor obra escrita por mãos humanas. Interessei. Gosto de literatura russa. Pensei em testá-lo e testei. Perguntei se ele sacava Soljenítsin. Queria ver se ele era bom mesmo. Se não era papo furado. Papo de orelha de livro. Detesto gente idiota disfarçada. Literatura russa é fácil. E Literatura soviética?

Assombrosamente, ele respondeu que sim. Citou toda a obra dele e disse ter lido “Um dia na vida de Ivan Denissovich”, que ficou apenas nela, mas tinha vontade de retomar a leitura das demais. E citou ainda outros três escritores soviéticos dissidentes: Vassili Grossman, Vladimir Voinovich e Boris Pasternak. E que adorava as poesias da Anna Akhmatova. “Canção de despedida” era sua poesia favorita, ao lado de “Réquiem”, mas gosta mais da primeira, porque conseguia contemplar a beleza e sinceridade na tristeza.

Caralho, ele não é foda, é um filho da puta. Sim, somos cultizinhos de merda. Foi aí que a porra aconteceu. Puta que pariu, me fodi. Sei lá, alguma coisa aconteceu quando comecei a ouvir com atenção o que ele falava. Fisiologicamente, alguma coisa aconteceu. Comecei a suar, e ficar meio enjoada, e o coração a disparar. Que porra adolescente era aquela. Respirei fundo. Tomei mais um gole de cerveja. Calma, calma.

E vi com quase lágrimas nos olhos um sentimento estranho queimando em minhas entranhas. Tudo nele era bonito, simples, encantador. Fiquei imaginando como seria beijá-lo e sentir o bigode dele desferindo carinhos em minha face. A maneira como ele limpava o bigode cheio de cerveja. O modo como ele olhava interrogativamente, perscrutando em todos o que ele estava falando, dominando a conversar com tom professoral. Aquilo que poderia parecer pedante e chato era simplesmente encantador.

Neste momento, naquela mesa, eu estava totalmente ausente, inerte, esfumaçada. A inteligência dele começou a dialogar com os meus sentimentos que estavam brotando, aquelas idéias e a paixão com que eram proferidas foram jorrando água fresca e cristalina sobre as sementes de bem querer que estavam a semear um terreno abandonado no meu coração. As estepes siberianas do meu coração estavam em degelo.

Fitava a boca dele e da mesma maneira com que ele vocifera idéias, queria que ele vociferasse os meus seios, com a violência peculiar dos atos amorosos, língua e lábios chupando meus mamilos, sentindo o leve, mas violento roçar do seu bigode sobre a minha pele branca, que machucada com tão firmes carícias, avermelhada a testemunhar os benefícios do amor físico. O meu corpo dominando cada ato, objeto submetendo o sujeito. É a melhor e mais inteligente forma de dominação. É a minha forma de dominação.

Simultaneamente, esta mesma boca vociferante desce pelo meu ventre guiado pela língua, sentindo o cheiro do meu corpo entregue, até chegar ao meu jardim habitado por uma única rosa vermelha, e experimento bem devagar, bem lentamente e suave o seu desfolhar pela boca vociferante, transformando os seus lábios em fiéis vassalos do meu prazer. Ao mesmo tempo, subitamente, sem ser convidado, mas amplamente desejado, venha seu pau transgressor devassar o meu jardim, destruí-lo com fortes e renitentes atos de transgressão que apenas o meu corpo perdoa. Se ele não soubesse fazer nada disso, não há problema, teria prazer de ser pacientemente sua professora, instruindo em cada detalhe, ensinando todos os movimentos, educando de acordo com as demandas de cada centímetro do meu corpo. Sei que ele será um bom aluno. E eu uma diligente professora.

O devaneio dissipa-se com mais um pedido de cerveja. Que calor estava fazendo esta noite. Observo com interesse, e ele me saca. Sacou e gostou. Um sorriso tímido, despretensioso, de quem não saber do que é capaz de provocar. Caralho, como o sorriso dele é encantador. É de dar raiva, por ser totalmente irresistível. Sei que ele é inteligente. Beleza. Será que ele fode melhor que o Armando? O Armando é legalzinho.

O Armando fode bacana, tem um papo legal e dá para o gasto. Embora não saiba foder um cu. Ele tem cara de quem sabe chupar gosto. Todo cara de barba sabe chupar gostoso. Pensado melhor, ele é muito magro. Não gosto de gente muito magra, tem feição de doente. Ele não deve fazer pressão. Foder com força, me pegar de jeito, com umas boas tapas. A violência inerente a qualquer ato sexual. O Armando é fraco, fode gostoso, mas é fraco. Ele é magro, mas deve dá conta. As mãos dele são grandes. Gosto de homem com mãos grandes, eu aprecio um carinho pesado, forte, robusto. Desejei que ele descobrisse de maneira delicada cada parte recôndita do meu corpo, que decifrasse o meu enigma carnal, a partir das disposições do seu espírito, o calor dos seus beijos, o afagar da sua barba, entre as minhas pernas, nas minhas nádegas, no meu pescoço, como um processo judiciosamente científico de descoberta do meu gozo e satisfação.

Agora, nada mais me importa. Ele tem que ser meu. Tudo o que ele representa e todas as sensações e sentimentos que ele provoca em mim tem que ser minha propriedade. Não tem mais volta. Já sinto até a dor de que isso não seja possível. Merda, como é lindo isso, de se sentir atraído por alguém que tu não conheces, não sabe nada a respeito, mas os indícios físicos e espirituais do que aquele ser representa, repercutem em ti de uma maneira instantânea e avassaladora, uma vez sentido isso, se é prisioneira de tal deleite. Um cárcere voluntário em que a chave está em suas mãos. Os grilhões invisíveis dos sentimentos. Algemas e chaves nas tuas mãos. Como é doce ser prisioneira de uma paixão. Qualquer paixão me diverte, eu dizia. Agora é irremediável: sou prisioneira dele.

Copo cheio, uma golada. Preciso ir embora. Já não aguento ficar na presença dele, ele me domina, me machuca, me invade, me sufoca de tanta fascinação. Aquela língua me fodendo. Aquela boca me chupando. Aquele pau me deflorando. As mãos grandes fazendo carinho nos meus cabelos e lendo Akhmatova com a mesma paixão que trata dos Karamazóvi. Sentir afagosamente os carinhos do seu bigode por todo o meu corpo.

Pergunto quanto fica minha parte na conta, e pago. Levanto, me despeço de todos e vou embora. Claro que dele também. Eu precisava sentir o cheiro dele. Uma mistura de perfume e suor, com cerveja e cigarro. Um inebriante cheiro de homem boêmio. Quando olho para trás, vejo o olhar dele, perscrutando o meu corpo, perscrutando o meu espírito. Não sei se houve algo de transcendental. Ou só se foi o álcool e a fome. Quem sabe. Isso aconteceu ontem. Mas senti o doce hálito de tabaco preencher o meu vazio.