Este texto é mais uma batalha. Mais um ato da minha luta com a vida. Não sei o que quero escrever. Apenas tenho vontade de escrever. Sem tema, sem propósito, sem palavras polidas. Acredito que desejo ser ouvido. Tão somente ouvido. Eu poderia falar para um gravador e solucionaria o meu problema de falar e ouvir. Não há dinheiro em meus bolsos para adquirir um gravador. E não quero ouvir. Quero falar. Exclusivamente falar. Duas coisas me ressacam a saliva: falar e calar demasiadamente. Bebo muita água. Não por sede, mas necessidade de beber água – que tem um pouco de sede.
Às vezes, fico parado a observar as pessoas. Todo o tipo de gente. Sei que é uma perda de tempo. Mas cada um perde da maneira que melhor lhe cabe. Por exemplo, tu, leitor, estás a perdê-lo lendo tais palavras. Não se chateie comigo. É apenas a verdade. Enfim, continue a me ouvir ou ler – fique a vontade. Observo as pessoas com um único objetivo: ver-me nelas. Defendo a hipótese na qual é possível verificar que em determinados comportamentos alheios contém muito daquele que lhes observa. É uma questão de identidade. A despeito de peremptórias recusas, todos são humanos, com quantidades consideráveis de sono, fome e estupidez. E curiosidade. Esta é com toda a certeza das razões pela qual tu me lês, leitor paciente.
Vejo nas pessoas, sobretudo, a estupidez que define em medidas variadas a humanidade de cada um. Se mais ou menos estupidez define a humanidade de alguém, não sei ainda. Só sei que é universal. Para ser breve, uma grande estupidez humana é a verdade. Não sei se vou conseguir me expressar bem: acredito que ser detentor da verdade é uma grande estupidez. A certeza subjacente, a expressão corporal de escárnio, o sorriso sarcástico, a tom de voz irônico de quem acredita profundamente estar com a verdade é uma estupidez sem proporções para as limitadas capacidades humanas de mensuração.
Não tenho conhecimento da existência da verdade. Talvez um dia me ocupe a pensar em tal questão que, claro está, deveria ser uma premissa fundamental destas linhas. Não me cobre coerência, leitor amigo. Tenho um problema que me pesa: sou sincero na medida exata da honestidade. Tal atribuição é algo inerente a minha natureza. Não é necessário dizer que já tive vários problemas em decorrência disso. É a minha maneira individual de combater o senso comum, a saber, eivado da lei do menor esforço: corpóreo e moral.
Tudo o que for fácil e tranquilo é buscado com tal desespero, que todas as sensibilidades e brios são devidamente calibrados para alcançar uma vida sem esforço e complicações. É óbvio que esse ledo engano é vendido como se fosse a salvação da humanidade. A mim, tudo o que tem aparência de facilidade e tranquilidade, repudio com veemência. A vida não é assim. Não é idílio. É complexa e complicada. É necessário olhá-la nos olhos e enfrentá-la. Não sei se é possível vencê-la. No entanto, é preciso ter consciência da luta. Lutar contra a vida parece uma lida inglória e perdida. Parecer, parece. Todavia, sinceramente, não sei.
Tenho apenas lutado. E uma das minhas maneiras de luta é escrever. Sentar, olhar o papel em branco e escrever. Escrever o que penso e sinto sobre a vida. Sem a pretensão de ser lido, seja por você, seja pela vida. O simples ato de escrever, de inscrever palavras, com mínimo sentido semântico e de acordo com a gramática normativa, é a minha forma de luta. Não sou cônscio de vitórias ou derrotas. Apenas sei da luta. Na qual, me empenho com regular dedicação. Cada texto é uma batalha. Elas são incontáveis, da ordem de se perderem na minha memória. Quando estou aqui, corcunda sobre a mesa, lutando, ouço seus risos: é a vida a rir de mim. Caçoando do meu esforço, do embate, da minha luta.
No entanto, não adianta, ela não vai de demover. Várias vezes eu pensei em desistir, de considerar uma causa perdida. Nesse movimento, percebi que essa é a minha causa: a escrita. A matéria da minha escrita é o tempo passado, a vida presente. Essa algoz contra qual eu luto. A cada palavra que apresento uma impressão, uma leitura, um julgamento. A cada texto que me faz sobreviver e ver sentido na minha vida. Pode parecer dramático. Que seja. Cada qual com o seu drama.
O meu é escrever. É lutar. Fazer dos meus dedos baionetas na batalha das ideias. Meus pensamentos e sentimentos se articulam nas palavras, uma a uma, juntando-se devagar, sem qualquer pretensão, e transformam-se em textos. Textos com sentidos claros ou subjacentes. Textos filosóficos, políticos ou literários. Ensaios, dissertações ou versos. Independente da forma, a escrever eu sigo.
As palavras são as minhas únicas companheiras. Confio nelas. Na verdade, devo minha vida a elas. Elas que me fazem continuar nesta guerra. Quando pestanejo desmotivado, elas me erguem e dizem que devo usá-las, que é necessário agrupá-las, isoladas são inofensivas, mas juntas, formando um bloco textual, elas são mais fortes, elas desferem golpes, marteladas, coronhadas.
Cada texto é uma martelada nesta esfinge dura, cruel, árida, impassível, impenetrável, ao mesmo tempo, fascinante, sedutora, belíssima e necessária que é a vida. Não tenho nada contra a vida. Nem a favor. A minha existência conseguiu adquirir patamares de progressivo sentido, depois que descobri que é apenas o conflito com a vida que me mantém de pé, respirando, vivo.
O meu conflito particular com a vida consiste em querer transformá-la. Acredito piamente que ela pode ser melhor do que o modo pela qual tem se apresentado até hoje aos meus sentidos e é representada no meu pensamento. Não é possível que seja apenas isso. Ela tem que ser mais. É necessário forjá-la duramente de acordo com nossas demandas. Construir uma ordem social em que a satisfação média de necessidades materiais, como vestir uma camisa, calçar um sapato, comer um queijo não seja um privilégio de poucos. Noto que essa base mínima para a manutenção da vida tem repercussões indeléveis no pensamento e na sensibilidade. Não é possível ser humano com fome. Não é possível ser humano sem pensamento. Não é possível ser humano sem sensibilidade.
Certa vez, ouvi um provérbio senegalês que dizia: a primeira necessidade do homem é comer, porque enquanto está com fome, não consegue pensar em mais nada que não seja comer; se essa necessidade fosse suprida, qual seria outra necessidade humana: a paz consigo e com o outro, porque se ele não tiver paz, até de comer ele esquece. Acredito que para conseguir essa paz é imprescindível não ver-se como uma árvore alheada do arvoredo, claro que a árvore não vive em função do arvoredo, mas ela não existe sem o arvoredo.
Cada um é uma árvore. Com raízes que dizem quais são a sua origem. Por mais que reneguem, todos têm uma origem e nossas raízes dizem de qual solo brotamos e esse mesmo chão irá nos abrigar no derradeiro tombo. Desprezar suas raízes, é simplesmente ignorar o que te sustenta, podes até manter-te em pé, mas sem sustentação, sem vigor, sem vida genuína. O tronco é a sustentação fundamental que sofreu transformações no processo de crescimento, ele tem marcas que registram a trajetória de cada árvore. As folhas são responsáveis pela respiração, pelo pensamento, pela sensibilidade, em suma, a fotossíntese é responsável pela manutenção da vida pregressa e presente da árvore.
A minha fotossíntese é escrever. Sou uma árvore que por vezes sente-se deslocada. Porém, sabe que não pode viver sem as outras árvores. Talvez, a imagem do deserto ilustre de maneira persuasiva e eloquente o que quero dizer. Escrever consegue estancar a minha solidão. Até porque escrever é um ato solitário por definição. As palavras, como já disse, são companheiras de todos os momentos, elas sim são o verdadeiro amigo do homem.
Vejo a solidão como uma necessidade, comparável a beber água. Uma vez satisfeita, pode aparecer em outros momentos, de acordo com as circunstâncias. O problema da solidão é quando se transforma de necessidade em dependência. É preciso medida e discernimento. A escrita é a minha medida. As palavras são o meu discernimento. O texto é o resultado, a martelada na vida. Estou cansado de escrever, caro leitor.
Contudo, vou dizer a estupidez que me acabe neste texto: pensando melhor, a escrita é a minha verdade, a minha martelada na batalha contra a vida. A escrever demasiado sobre a bela e fatídica vida. Este obtuso bloco textual é mais uma martelada. Ou uma tentativa, como todas as outras, que me mantém neste inexorável ato de escrever.