sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

AO SUL DO RIO BRAVO







Belém do Pará. Oito horas, uma manhã de janeiro, mormaço calorento depois de uma madrugada de chuva, ventos e brisas úmidos que abrasavam ainda mais o calor. Barulhos do caos urbano, buzinas, motores, fumaça dos escapamentos, milhares de pessoas lotam ônibus, dirigem carros, andam a pé, moto ou bicicleta. Algumas centenas dirigem-se para a rodoviária, afinal são férias, muitos viajam a trabalho, outros a lazer.

Os ônibus movimentam-se em direção a diferentes destinos, embarque e desembarque, ida e volta, no qual Belém é apenas mais um lugar, mais uma parada, mais um ponto no extenso mapa de cidades que compõe o território nacional, seja de entrada, seja de saída. Belém-Altamira é o itinerário dos ônibus da Transbrasiliana nesta modorrenta manhã de janeiro, uma viagem prevista para as oito horas e a outra, às dezessete horas. A primeira sem ar-condicionado, passagem mais barata, lotação esgotada. Na plataforma de embarque, várias pessoas ao lado de suas bagagens aguardam o ônibus. Crianças, mulheres, homens, velhos. Pais, mães, netos e filhos. Todos igualmente trabalhadores, sejam mulheres, pais, filhos, todos igualmente baratos no ônibus barato.

Meia-hora de atraso, como sempre, desculpa: parada para abastecimento e troca de óleo. Dona Maria aguarda sentada, seus joelhos doem, desembarcou em Belém há dois dias vindo de Natal, dormiu na casa de uma conhecida, a última noite de sono foi de sonhos intranquilos, visões oníricas de sua vida, os joelhos doem e prolongam a espera. Mais a frente, Seu Raimundo trocava umas palavras com o motorista sobre o atraso, uma fala mansa que rapidamente ganha empatia. Estranhava tanto barulho. Fumava um cigarro de palha. Estava em Belém a trabalho e resolvendo problemas pessoais.

Seu Raimundo e Dona Maria embarcaram às nove horas para Altamira.

Ela na poltrona três, ele na poltrona dez. O ônibus por várias partes é encardido pela poeira da estrada. As poltronas são velhas e desgastadas, fedem a suor e mofo. Os vidros das janelas são opacos pela lama seca. A janela de Dona Maria está emperrada, ela não consegue mover. O calor começa a acossar de maneira igual a todos os passageiros. Depois de algum tempo, o passageiro ao seu lado percebe a situação e abre a janela. Desfruta do vento, o joelho está quieto, pensa na vida. Seu Raimundo vai olhando a estrada, com aquela vontade de pitar um cigarrinho, pensando na vida.

Ambos querem chegar o quanto antes a Altamira.

Várias pessoas sobem e descem no transcorrer do percurso. Paradas que fazem o trajeto ficar mais longo. A poeira, o calor, pessoas entram e saem, fazem a viagem não ter fim. Em Tucuruí, embarca um rapaz com a aparência de adolescente. Tem dezoito anos. Chama-se Nelson. Fugido depois de uma briga e um crime. Também vai para Altamira.

Dona Maria espera encontrar os dois filhos. Eles vivem em discórdia. Não se falam desde a morte do pai. Ambos se culpam por não darem assistência suficiente. Na verdade, disputavam quem dava mais. E na disputa, nos poucos recursos, no avançar implacável da doença, o velho morreu. Sempre amaram mais ao pai. Isto doía em Dona Maria.

Seu Vírgulino era lavrador, admirador de Lampião, não conseguia viver longe da terra, do cultivo, da plantação. Semeava feijão, mandioca e milho. Criava uns poucos bichos para subsistência: galinha, bode, cabrito e porco. Macho que resolvia tudo na mão ou na peixeira, que não levava desaforo para casa. Beber era seu esporte favorito, que às vezes lhe rendia sangue e hematomas. Um câncer de próstata finalizou seus dias. Macho até o fim.

Dona Maria ia lembrando todos esses acontecimentos que agora pareciam remotos, ora vagos, ora nítidos. Casou-se cedo, tinha apenas quinze anos. Ele, vinte e sete. Ficava remoendo, se não houvesse casado, sua vida seria outra, sua sorte seria diferente.
Com a mulher, Seu Vírgulino era enérgico e autoritário, não havia conversa, apenas ordens, na mesma proporção, que se esperava obediência. E ela obedecia. Muito religiosa, desde menina. Sua mãe dizia que seu pai era a cabeça da casa, era melhor obedecer do que sacrificar. Deus castigava. Era necessário ser sábia, a mulher tinha que criar os filhos, cuidar do marido, edificar a sua casa. Ela tentava seguir os ensinamentos da mãe.

Olhando as vastas pastagens cheias de bois, as árvores queimadas, os rios, os igarapés, que distraiam e acalentavam seus pensamentos, não conseguia ver direito, vultos pouco nítidos, estava sem óculos, custavam quinhentos reais, quase toda a aposentadoria, considerava que não havia seguido as orientações da mãe a termo, que havia fracassado. Sua vida seria totalmente diferente sem o casamento. Mas esse era o destino da mulher, não tinha como fugir. Era isso, ou ficar solteirona, ou para titia. Solteirice ou casamento, não sabia o que era pior, pensando do alto de sua velhice.

Um filho por ano era uma das ordens do marido. No rigor, tal qual uma lei sagrada, inquestionável, foram gerados doze filhos, seis mulheres, seis homens. Dona Maria sabia que uma filha morava no Rio, um filho em Belo Horizonte. No entanto, não tinha o contato deles. Tinha consciência que não queriam ser encontrados. Os demais, sem contato e sem lugar e sem notícia de suas existências. Vivo ou morto, não sabia, e não fazia diferença. Somente com três filhos ainda havia contato. Era o bastante, apesar da saudade.

Um que morava em Natal e os outros dois em Altamira. Francisco é o caçula e o filho mais querido de Dona Maria. Moravam juntos na mesma casa com a nora. Jerusa não gostava de Dona Maria, achava que ela se metia muito na vida do filho. Depois de dois meses de brigas, bate bocas e confusões, Dona Maria arrumou suas trouxas e partiu no primeiro ônibus para Belém.

Não queria ser peso para ninguém, ainda mais para chiquinho. Dona Maria não tinha relações próximas com os filhos que ainda mantinha contato. A mulher do Francisco era um problema e foi embora. Os dois outros filhos que moravam em Altamira, Jonas e Alberto, eram brigados de morte.

Entretanto, esta não era a sua maior amargura. Dentre inúmeras acumuladas em setenta e três anos de vida, era apenas uma. A maior era não ter uma casa. Não ter um lugar. Não ter um teto. Um lugar para sossegar e dizer que era exclusivamente seu e que ninguém poderia lhe incomodar ou expulsar.

Quando os filhos cresceram e arranjaram suas próprias famílias, ficou ela e Seu Vírgulino na casa construída durante o casamento. Todavia, o câncer, o tratamento, a falta de dinheiro, fizeram com que a venda da casa fosse à única solução para restituir a saúde do patriarca da família. O dinheiro adquirido durou alguns meses do tratamento.

Seu Vírgulino viveu quatro anos com a doença e no último ano perdeu a razão. Não dizia nada que fizesse sentido e nos momentos de raiva extrema, batia em quem estivesse pela frente. Sobretudo, Dona Maria. Ela aguentou estoicamente estes quatro anos para presenciar o definhamento do marido. 

E pensava agora, quando o vento cessava e o calor cozia suas carnes envelhecidas pelo sofrimento de mulher e mãe, se realmente havia valido o infortúnio ter vendido a casa. Numa rápida operação de raciocínio, procurando alguma solução para a sua situação desoladora, se ela não tivesse vendido a casa, considerando que seu marido iria morrer de qualquer modo, nem era necessário aquele calor e todos esses pensamentos, pois estaria na sua casa, cultivando sua roça, criando suas galinhas e alguns porcos. Estaria feliz e de barriga cheia.

Ela sabia o sacrilégio de tal raciocínio hipotético, claro que nada substituiria a saúde do seu marido, nenhum bem material, inclusive sua casa. Ele estava morto, ela sem casa. Isso amargurava profundamente o seu coração. Angustiava ainda mais porque esta situação fazia de uma só vez depender diretamente dos filhos, depender da benevolência dos filhos para ter um teto.

Os joelhos doíam, uma queda provocada pela baixa visão, descia de um ônibus em Natal, caiu em posição de oratório na rua, quase foi atropelada, um rapaz lhe socorreu. Quando pensou nisso agradeceu a Deus por ainda existir bondade no mundo. Sem dinheiro, sem óculos, sem saúde, a velhice lhe fazia dormir no revolver abrupto dos buracos da estrada que parecia arrasada por uma guerra.

Estava a caminho de um teto em Altamira. Aposentada, um salário mínimo, não havia condições para alugar uma casa para si, havia procurado os programas de moradia do governo com alguma esperança. E nada. Ela achava que era devido à aposentadoria. Não era totalmente baixa renda, tinha renda fixa, graças a Deus. Não tinha bolsa-família, sem netos, sem crianças, sozinha. Sua vida devia fazer parte de alguma planilha amarelada esquecida num arquivo mofado, nem banco de dados havia se transformado na Previdência Social. Não sabia na verdade. Quer dizer sabia sim, desde menina: nada do governo funciona para os pobres. Só agora, depois de velha, ter esperança no governo.

Coisa de velho, esperança de velho, vida de velho que está passando da hora. Quando pensava nisso, um leve desejo de morte consolador se agarrava ao seu coração. Mas se assustava, pedia perdão pelo pecado. Temia o castigo eterno. Apesar de tudo, gostava de viver, insistia em existir, ao passo que uma verdade absoluta não saía da sua cabeça e se ratificava no seu coração ouvido na infância: mãe e pai é bom, mas barriga cheia é melhor. A despeito disso, estava a caminho de uma promessa de barriga cheia e teto entre a discórdia dos filhos, que amavam mais um pai morto que uma mãe viva. Os dois filhos há três meses eram operários em Belo Monte.

Seu Raimundo pensava em Amélia. Uma das três amantes que visitava com frequência. Jussara em Marabá, Socorro em Altamira. Amélia era sua melhor amante. Aquela mulher lhe dava canseira, era insaciável para a sua velhice. Empregada doméstica, moradora do Guamá, viúva, tinha três filhos homens, todos gostavam de Raimundo.

Como era motorista, vivia de cidade em cidade. Tinha família. Na verdade, quatro filhos casados e uma velha mulher em Garrafão do Norte, sua cidade de origem. Depois que arranjou esse emprego de motorista, passava as férias. Visita à mulher e os filhos. Queria ver as crianças. Na sua vida havia apenas duas alegrias: seus netos e a liberdade de ser motorista.

Gostava da estrada, do imprevisto, do improviso, da vida singrando aqueles mares de asfalto e lama, era capitão de uma nau motorizada. O cigarrinho de palha era um prazer similar às suas amantes. Fazia uns dez anos que não era de homem e mulher a sua relação com a esposa. Sua responsabilidade com o casamento era enviar todos os meses uma parte do seu salário a Dona Auxiliadora e visitá-la nas férias.

Para ela estava de bom tamanho. Estava satisfeita sem homem em casa, a sua aposentadoria e o dinheirinho que Raimundo manda era certo como sua tosse em tempo de chuva. Podia se dedicar em tempo integral aos netos e a Igreja. Católica fervorosa, ela queria apenas dedicar-se ao próximo e garantir seu lugar no céu. Não estava bem de saúde, a tosse se agravara junto às problemas no coração. Até o final de fevereiro, Seu Raimundo receberia a notícia de sua morte.

Pensava em Amélia, mas olhava para a aliança de ouro que não tirava do dedo. Próximo ao casamento estava passando perto de Serra Pelada. Tinha um conhecido entre os garimpeiros. Comprou uma pepita grande a um bom preço, na camaradagem, no tempo que o ouro era abundante. A pepita virou duas belas alianças. Olhava e lembrava-se de sua velha.

Sentia um carinho especial, um amor que foi se perdendo com o passar do tempo, um respeito por aquela mulher que era mãe de seus filhos, avó de seus netos. Apesar de tudo, Raimundo prezava pela família. Mandar dinheiro para Auxiliadora era a sua forma de garantir que ela tivesse uma velhice tranquila.

Ela, por sua vez, não usava a aliança. Todos na cidade sabiam que não vivia com o marido. Era uma forma de se resguardar, vivia socialmente como uma viúva. Guardava numa caixinha de madeira, junto a um par de brincos de pérola e o seu rosário. Quando a saudade apertava, pegava a aliança, colocava no dedo. O estado de viuvez cessava, sentia-se casada novamente, tal qual aquele tempo remoto, que as lembranças foram se perdendo no transcorrer dos anos, no qual Raimundo ainda não era motorista e apenas seu marido, na casa, na cama, na vida.

Agora, ele apenas representava o dinheiro a mais no fim do mês. E estava satisfeita. Da vida apenas esperava uma boa morte e que seus filhos e netos fossem felizes, tal qual ela era agora, servindo a Deus, servindo a família, sem Raimundo e com o seu dinheiro. Desejava a Raimundo que fosse um motorista com saúde, que às vezes sentia saudade. Só às vezes, bem às vezes, só de vem em quando, principalmente nestas noites frias que a tosse lhe acossava o sono.

Estava feliz porque a empresa que Raimundo trabalha vai prestar serviço em Belo Monte. Mais dinheiro no fim do mês. Deus cuidava do seu coração e ouvia suas preces. Raimundo sabia que a mulher rezava por ele e lembrava-se disso todas às vezes que olhava a aliança. A boa notícia que fora receber em Belém, era resultado de seu prazer em ser motorista e às orações da Auxiliadora. Motorista exclusivo dos operários em Belo Monte. Socorro ia gostar da notícia.

Duas poltronas atrás, Nelson estava ouvindo sertanejo e tecnomelody. Encostava-se satisfeito na poltrona, depois da parada do almoço, pronto para a sesta. Havia gastado o único dinheiro na comida. Estava aperreado de fome. O pai iria recebê-lo na rodoviária. A fome o fez pensar. Agora estava de barriga cheia e satisfeito. Todavia, não conseguia dormir. O ônibus balançava muito na estrada de lama e buracos.

Morava em Tucuruí com a irmã. Zuleide é empregada doméstica na casa de um engenheiro da Hidrelétrica. Morava com o marido e dois filhos e o irmão. Osvaldo é pedreiro, mas o serviço anda escasso e pagando mal. Pensou inúmeras vezes em ir para Belo Monte. Zuleide em hipótese alguma quer o marido longe. Se ele for, ela diz que fica viúva e coloca outro homem dentro de casa. Ele não vai, não tem garantia de emprego e não quer perder a família.

Nelson quer ir. Solteiro. Ensino fundamental completo. Sabe escrever o nome e uma dezena de palavras. É um exímio leitor de figuras. Não gosta muito de palavras, elas cansam e são difíceis de entender. Trabalha desde os quinze anos em pequenos bicos e serviços braçais. Morava com a mãe, o pai e um irmão. Depois que Carlos e Sebastião arranjaram trabalho numa fazenda perto de Altamira. Eles haviam trabalhado na construção da barragem. Hidrelétrica pronta acabou o emprego. Nelson ficou sozinho com a mãe.

Um dia, lembra com clareza esse dia, com a claridade de sua mente ainda infantil, a mãe já estava doente. Não se sabia qual era a doença. Uma consulta estava marcada para três meses. Aguardava como podia a consulta. Dona Ermelinda deitada na cama pediu água para Zuleide que estava de visita. Nelson capinava o quintal, mato alto chama muito carapanã. Sua mãe estava reclamando muito das picadas. Ele ouviu o pedido, mas pensou que Zuleide fosse atender.

Outra vez o pedido. Nelson, todo fedido de mato e suado, foi ver porque a irmã não atendia. Estava falando com uma amiga no celular. Prontamente, mesmo sujo e fedendo, serviu um copo com água a mãe. Obrigado, meu filho, Deus te conserve bom, ela agradeceu. Dois dias depois ela morreu. Dormiu e não acordou mais. A irmã ainda sofre do remorso de não ter dado água a mãe. Essa é a última lembrança nítida da mãe.

Nelson observava na poltrona do outro lado do corredor, uma mãe amamentando o filho. Vinha à memória este último contato e chorava. Considerava-se homem, mas era apenas um menino. Estava indo ao encontro do pai e irmão, procurar um emprego, recomeçar a vida. Na verdade, estava também fugindo de uma confusão.

Um dos seus bicos era ser segurança em festas. Fazia mais um trabalho auxiliar do que realmente de apoio. Não tinha tamanho e nem força para separar briga de bêbados. Recolhia os ingressos. A boate era de um amigo do patrão de sua irmã. Álvaro gostava muito de Nelson.

Gostava do modo esforçado do menino se fazer parecer homem. Uma vez a filha do dono da Boate chegou ao pai e perguntou que aquele menino fazia junto aos peões da segurança. Ele disse em tom de risada que o menino era homem, maior de idade, na carteira e no meio da peãozada.

Sábado era o dia mais movimentado. Estava tudo normal. Ninguém mais na portaria, na bilheteria. Quando Nelson entra na festa e toma sua primeira cerveja, um homem bêbado e enfurecido corre em sua direção, gritando que este filho da puta havia se engraçado com sua mulher.

Ele não entende nada. Tudo é muito rápido. O homem é gordo e pouco ágil. Quebra uma garrafa. No reflexo, Nelson quebra uma. O homem fere o braço do garoto, e ele afunda os cacos pontiagudos da garrafa na barriga macia do homem.

Não pensou muito, fez um curativo no braço, pegou uma trouxa de roupa, comprou uma passagem com destino a Altamira. Nem se despediu da irmã. Havia apenas vinte reais no bolso, gasto no almoço. Cabelo ao vento, Nelson contemplava a estrada, via a paisagem de verde, queimada e fumaça, enquanto estes pensamentos invadiam sua cabeça.

O ônibus diminui a velocidade. Mais a frente passava uma boiada. Sentiu que eram bois devido ao cheiro de merda no ar, um nuvem de esterco invadiu o ônibus. Um mal-estar geral, homens e mulheres reclamam, crianças choraram. Nesta atmosfera, projetava com uma vida diferente em Altamira. Queria ter uma casa, uma mulher e uma moto. Este era seu sonho. A primeira coisa que faria ao pisar na cidade era se recrutar em Belo Monte.

O ônibus finalmente chega a Altamira.

Dona Maria a vista um conhecido que é taxista. Pega uma carona para casa de um dos filhos, busca um teto e sossego. Mais não saí de uma cabeça: pai e mãe é bom, melhor é barriga cheia. Estava com fome, filhos era bom, melhor era a barriga cheia. Vida agreste. Ainda não sabia que os filhos trabalhavam na construção da usina e que haviam feito às pazes. Num futuro próximo, ia provar, nos últimos dias de sua velhice, como era bom ter filhos, obviamente em razão da barriga cheia. Enquanto durasse a construção.

Seu Raimundo pegou a primeira condução que fosse para Vitória do Xingu. A empresa ficava no caminho. Estava ansioso com o novo trabalho. Novas instruções, uniforme com cheiro de limpinho. Mas antes, arrumou um cigarrinho de palha. Entre os tragos, ligou para Socorro, que atendeu feliz. Desligou e lembrou que precisava passar no Banco. Olhou a aliança, tinha que transferir o dinheiro do mês. Pensou na velha, nos netos, na família, devia muito as suas orações. Belo Monte lhe esperava.

Nelson esperava o pai que ainda não apareceu. Sem dinheiro, sem amigos, sem conhecidos, sozinho, sentia-se desgraçadamente abandonado. Lembrava-se da mãe e isso o consolava. Sentou-se de cócoras perto da mala que continha todos os seus documentos e três mudas de roupas. Seus documentos eram as coisas mais valiosas. A partir da foto, da assinatura, dos números, ele existe para o Estado e sociedade. Seus braços e pernas eram vigorosas forças de trabalho. Sua mercadoria na sociedade mediada por mercadorias – força de trabalhão, salário, consumo. Viu um homem com um uniforme. Era operário de Belo Monte. Estava a caminho do setor de RH. Foi junto com ele e a esperança de ser recrutado. Uma casa, mulher, moto e calos muitos calos faziam parte do seu futuro.

Há poucos quilômetros daquela rodoviária, aterrissava um avião vindo de Belém. Aeroporto de Altamira. Mineiros, cariocas, paulistas, gaúchos, catarinenses. Engenheiros, médicos, empresários, advogados, profissionais liberais. Os representantes do Brasil que manda. Suas vidas podem ser resumidas numa sentença: empreendedores de plenas capacidades individuais a procura da felicidade. Tal qual uma peste, com o seu poder empreendedor, esquadrinham as oportunidades, aproveitam-nas até a última gota. Depois, partem em retirada, para novas oportunidades, novos empreendimentos.

Neste exato momento, os que mandam e os que obedecem dividem o mesmo espaço. Empreendimento, barriga cheia, emprego novo, um sonho. Todos parecem estar satisfeitos e felizes com Belo Monte. Índios, ribeirinhos, danos ambientais não existem no texto, não existem para Dona Maria, Seu Raimundo e Nelson. É o nosso progresso.

O resto dos habitantes deste país pelo seu silêncio ensurdecedor, com a exceção de alguns cartazes e vozes roucas de “Pare Belo Monte”, também querem a energia, querem o progresso, querem a devastação sem proporções de Belo Monte. Como qualquer brasileiro, você deve estar nesse momento indiferente, satisfeito ou feliz por estas atualizações de velhas notícias ao sul Rio Bravo. Bem-vindo ao mundo realmente existente, no qual a barbárie é ao mesmo tempo chata, tediosa ou motivo de risadas, tudo dependente dos telespectadores e seu senso de humor. Ligue a televisão e divirta-se.