Belém do Pará. Oito horas, uma
manhã de janeiro, mormaço calorento depois de uma madrugada de chuva, ventos e
brisas úmidos que abrasavam ainda mais o calor. Barulhos do caos urbano,
buzinas, motores, fumaça dos escapamentos, milhares de pessoas lotam ônibus,
dirigem carros, andam a pé, moto ou bicicleta. Algumas centenas dirigem-se para
a rodoviária, afinal são férias, muitos viajam a trabalho, outros a lazer.
Os ônibus movimentam-se em direção
a diferentes destinos, embarque e desembarque, ida e volta, no qual Belém é
apenas mais um lugar, mais uma parada, mais um ponto no extenso mapa de cidades
que compõe o território nacional, seja de entrada, seja de saída.
Belém-Altamira é o itinerário dos ônibus da Transbrasiliana nesta modorrenta
manhã de janeiro, uma viagem prevista para as oito horas e a outra, às
dezessete horas. A primeira sem ar-condicionado, passagem mais barata, lotação
esgotada. Na plataforma de embarque, várias pessoas ao lado de suas bagagens
aguardam o ônibus. Crianças, mulheres, homens, velhos. Pais, mães, netos e
filhos. Todos igualmente trabalhadores, sejam mulheres, pais, filhos, todos
igualmente baratos no ônibus barato.
Meia-hora de atraso, como sempre,
desculpa: parada para abastecimento e troca de óleo. Dona Maria aguarda
sentada, seus joelhos doem, desembarcou em Belém há dois dias vindo de Natal,
dormiu na casa de uma conhecida, a última noite de sono foi de sonhos
intranquilos, visões oníricas de sua vida, os joelhos doem e prolongam a
espera. Mais a frente, Seu Raimundo trocava umas palavras com o motorista sobre
o atraso, uma fala mansa que rapidamente ganha empatia. Estranhava tanto
barulho. Fumava um cigarro de palha. Estava em Belém a trabalho e resolvendo
problemas pessoais.
Seu Raimundo e Dona Maria embarcaram
às nove horas para Altamira.
Ela na poltrona três, ele na
poltrona dez. O ônibus por várias partes é encardido pela poeira da estrada. As
poltronas são velhas e desgastadas, fedem a suor e mofo. Os vidros das janelas
são opacos pela lama seca. A janela de Dona Maria está emperrada, ela não
consegue mover. O calor começa a acossar de maneira igual a todos os
passageiros. Depois de algum tempo, o passageiro ao seu lado percebe a situação
e abre a janela. Desfruta do vento, o joelho está quieto, pensa na vida. Seu
Raimundo vai olhando a estrada, com aquela vontade de pitar um cigarrinho,
pensando na vida.
Ambos querem chegar o quanto antes
a Altamira.
Várias pessoas sobem e descem no
transcorrer do percurso. Paradas que fazem o trajeto ficar mais longo. A
poeira, o calor, pessoas entram e saem, fazem a viagem não ter fim. Em Tucuruí,
embarca um rapaz com a aparência de adolescente. Tem dezoito anos. Chama-se
Nelson. Fugido depois de uma briga e um crime. Também vai para Altamira.
Dona Maria espera encontrar os dois
filhos. Eles vivem em discórdia. Não se falam desde a morte do pai. Ambos se
culpam por não darem assistência suficiente. Na verdade, disputavam quem dava
mais. E na disputa, nos poucos recursos, no avançar implacável da doença, o
velho morreu. Sempre amaram mais ao pai. Isto doía em Dona Maria.
Seu Vírgulino era lavrador, admirador
de Lampião, não conseguia viver longe da terra, do cultivo, da plantação.
Semeava feijão, mandioca e milho. Criava uns poucos bichos para subsistência:
galinha, bode, cabrito e porco. Macho que resolvia tudo na mão ou na peixeira,
que não levava desaforo para casa. Beber era seu esporte favorito, que às vezes
lhe rendia sangue e hematomas. Um câncer de próstata finalizou seus dias. Macho
até o fim.
Dona Maria ia lembrando todos esses
acontecimentos que agora pareciam remotos, ora vagos, ora nítidos. Casou-se
cedo, tinha apenas quinze anos. Ele, vinte e sete. Ficava remoendo, se não
houvesse casado, sua vida seria outra, sua sorte seria diferente.
Com a mulher, Seu Vírgulino era
enérgico e autoritário, não havia conversa, apenas ordens, na mesma proporção,
que se esperava obediência. E ela obedecia. Muito religiosa, desde menina. Sua
mãe dizia que seu pai era a cabeça da casa, era melhor obedecer do que
sacrificar. Deus castigava. Era necessário ser sábia, a mulher tinha que criar
os filhos, cuidar do marido, edificar a sua casa. Ela tentava seguir os
ensinamentos da mãe.
Olhando as vastas pastagens cheias
de bois, as árvores queimadas, os rios, os igarapés, que distraiam e
acalentavam seus pensamentos, não conseguia ver direito, vultos pouco nítidos,
estava sem óculos, custavam quinhentos reais, quase toda a aposentadoria,
considerava que não havia seguido as orientações da mãe a termo, que havia
fracassado. Sua vida seria totalmente diferente sem o casamento. Mas esse era o
destino da mulher, não tinha como fugir. Era isso, ou ficar solteirona, ou para
titia. Solteirice ou casamento, não sabia o que era pior, pensando do alto de
sua velhice.
Um filho por ano era uma das ordens
do marido. No rigor, tal qual uma lei sagrada, inquestionável, foram gerados
doze filhos, seis mulheres, seis homens. Dona Maria sabia que uma filha morava
no Rio, um filho em Belo Horizonte. No entanto, não tinha o contato deles.
Tinha consciência que não queriam ser encontrados. Os demais, sem contato e sem
lugar e sem notícia de suas existências. Vivo ou morto, não sabia, e não fazia
diferença. Somente com três filhos ainda havia contato. Era o bastante, apesar
da saudade.
Um que morava em Natal e os outros
dois em Altamira. Francisco é o caçula e o filho mais querido de Dona Maria.
Moravam juntos na mesma casa com a nora. Jerusa não gostava de Dona Maria,
achava que ela se metia muito na vida do filho. Depois de dois meses de brigas,
bate bocas e confusões, Dona Maria arrumou suas trouxas e partiu no primeiro
ônibus para Belém.
Não queria ser peso para ninguém,
ainda mais para chiquinho. Dona Maria não tinha relações próximas com os filhos
que ainda mantinha contato. A mulher do Francisco era um problema e foi embora.
Os dois outros filhos que moravam em Altamira, Jonas e Alberto, eram brigados
de morte.
Entretanto, esta não era a sua maior
amargura. Dentre inúmeras acumuladas em setenta e três anos de vida, era apenas
uma. A maior era não ter uma casa. Não ter um lugar. Não ter um teto. Um lugar
para sossegar e dizer que era exclusivamente seu e que ninguém poderia lhe
incomodar ou expulsar.
Quando os filhos cresceram e
arranjaram suas próprias famílias, ficou ela e Seu Vírgulino na casa construída
durante o casamento. Todavia, o câncer, o tratamento, a falta de dinheiro,
fizeram com que a venda da casa fosse à única solução para restituir a saúde do
patriarca da família. O dinheiro adquirido durou alguns meses do tratamento.
Seu Vírgulino viveu quatro anos com
a doença e no último ano perdeu a razão. Não dizia nada que fizesse sentido e
nos momentos de raiva extrema, batia em quem estivesse pela frente. Sobretudo,
Dona Maria. Ela aguentou estoicamente estes quatro anos para presenciar o definhamento
do marido.
E pensava agora, quando o vento
cessava e o calor cozia suas carnes envelhecidas pelo sofrimento de mulher e mãe,
se realmente havia valido o infortúnio ter vendido a casa. Numa rápida operação
de raciocínio, procurando alguma solução para a sua situação desoladora, se ela
não tivesse vendido a casa, considerando que seu marido iria morrer de qualquer
modo, nem era necessário aquele calor e todos esses pensamentos, pois estaria
na sua casa, cultivando sua roça, criando suas galinhas e alguns porcos.
Estaria feliz e de barriga cheia.
Ela sabia o sacrilégio de tal
raciocínio hipotético, claro que nada substituiria a saúde do seu marido,
nenhum bem material, inclusive sua casa. Ele estava morto, ela sem casa. Isso
amargurava profundamente o seu coração. Angustiava ainda mais porque esta
situação fazia de uma só vez depender diretamente dos filhos, depender da
benevolência dos filhos para ter um teto.
Os joelhos doíam, uma queda
provocada pela baixa visão, descia de um ônibus em Natal, caiu em posição de
oratório na rua, quase foi atropelada, um rapaz lhe socorreu. Quando pensou
nisso agradeceu a Deus por ainda existir bondade no mundo. Sem dinheiro, sem
óculos, sem saúde, a velhice lhe fazia dormir no revolver abrupto dos buracos
da estrada que parecia arrasada por uma guerra.
Estava a caminho de um teto em
Altamira. Aposentada, um salário mínimo, não havia condições para alugar uma
casa para si, havia procurado os programas de moradia do governo com alguma
esperança. E nada. Ela achava que era devido à aposentadoria. Não era
totalmente baixa renda, tinha renda fixa, graças a Deus. Não tinha
bolsa-família, sem netos, sem crianças, sozinha. Sua vida devia fazer parte de
alguma planilha amarelada esquecida num arquivo mofado, nem banco de dados
havia se transformado na Previdência Social. Não sabia na verdade. Quer dizer
sabia sim, desde menina: nada do governo funciona para os pobres. Só agora,
depois de velha, ter esperança no governo.
Coisa de velho, esperança de velho,
vida de velho que está passando da hora. Quando pensava nisso, um leve desejo
de morte consolador se agarrava ao seu coração. Mas se assustava, pedia perdão
pelo pecado. Temia o castigo eterno. Apesar de tudo, gostava de viver, insistia
em existir, ao passo que uma verdade absoluta não saía da sua cabeça e se
ratificava no seu coração ouvido na infância: mãe e pai é bom, mas barriga
cheia é melhor. A despeito disso, estava a caminho de uma promessa de barriga
cheia e teto entre a discórdia dos filhos, que amavam mais um pai morto que uma
mãe viva. Os dois filhos há três meses eram operários em Belo Monte.
Seu Raimundo pensava em Amélia. Uma
das três amantes que visitava com frequência. Jussara em Marabá, Socorro em
Altamira. Amélia era sua melhor amante. Aquela mulher lhe dava canseira, era
insaciável para a sua velhice. Empregada doméstica, moradora do Guamá, viúva,
tinha três filhos homens, todos gostavam de Raimundo.
Como era motorista, vivia de cidade
em cidade. Tinha família. Na verdade, quatro filhos casados e uma velha mulher
em Garrafão do Norte, sua cidade de origem. Depois que arranjou esse emprego de
motorista, passava as férias. Visita à mulher e os filhos. Queria ver as
crianças. Na sua vida havia apenas duas alegrias: seus netos e a liberdade de
ser motorista.
Gostava da estrada, do imprevisto,
do improviso, da vida singrando aqueles mares de asfalto e lama, era capitão de
uma nau motorizada. O cigarrinho de palha era um prazer similar às suas
amantes. Fazia uns dez anos que não era de homem e mulher a sua relação com a
esposa. Sua responsabilidade com o casamento era enviar todos os meses uma
parte do seu salário a Dona Auxiliadora e visitá-la nas férias.
Para ela estava de bom tamanho.
Estava satisfeita sem homem em casa, a sua aposentadoria e o dinheirinho que
Raimundo manda era certo como sua tosse em tempo de chuva. Podia se dedicar em
tempo integral aos netos e a Igreja. Católica fervorosa, ela queria apenas
dedicar-se ao próximo e garantir seu lugar no céu. Não estava bem de saúde, a
tosse se agravara junto às problemas no coração. Até o final de fevereiro, Seu
Raimundo receberia a notícia de sua morte.
Pensava em Amélia, mas olhava para
a aliança de ouro que não tirava do dedo. Próximo ao casamento estava passando
perto de Serra Pelada. Tinha um conhecido entre os garimpeiros. Comprou uma
pepita grande a um bom preço, na camaradagem, no tempo que o ouro era
abundante. A pepita virou duas belas alianças. Olhava e lembrava-se de sua
velha.
Sentia um carinho especial, um amor
que foi se perdendo com o passar do tempo, um respeito por aquela mulher que
era mãe de seus filhos, avó de seus netos. Apesar de tudo, Raimundo prezava
pela família. Mandar dinheiro para Auxiliadora era a sua forma de garantir que
ela tivesse uma velhice tranquila.
Ela, por sua vez, não usava a
aliança. Todos na cidade sabiam que não vivia com o marido. Era uma forma de se
resguardar, vivia socialmente como uma viúva. Guardava numa caixinha de
madeira, junto a um par de brincos de pérola e o seu rosário. Quando a saudade
apertava, pegava a aliança, colocava no dedo. O estado de viuvez cessava,
sentia-se casada novamente, tal qual aquele tempo remoto, que as lembranças
foram se perdendo no transcorrer dos anos, no qual Raimundo ainda não era
motorista e apenas seu marido, na casa, na cama, na vida.
Agora, ele apenas representava o
dinheiro a mais no fim do mês. E estava satisfeita. Da vida apenas esperava uma
boa morte e que seus filhos e netos fossem felizes, tal qual ela era agora,
servindo a Deus, servindo a família, sem Raimundo e com o seu dinheiro.
Desejava a Raimundo que fosse um motorista com saúde, que às vezes sentia
saudade. Só às vezes, bem às vezes, só de vem em quando, principalmente nestas
noites frias que a tosse lhe acossava o sono.
Estava feliz porque a empresa que
Raimundo trabalha vai prestar serviço em Belo Monte. Mais dinheiro no fim do
mês. Deus cuidava do seu coração e ouvia suas preces. Raimundo sabia que a
mulher rezava por ele e lembrava-se disso todas às vezes que olhava a aliança.
A boa notícia que fora receber em Belém, era resultado de seu prazer em ser
motorista e às orações da Auxiliadora. Motorista exclusivo dos operários em
Belo Monte. Socorro ia gostar da notícia.
Duas poltronas atrás, Nelson estava
ouvindo sertanejo e tecnomelody. Encostava-se satisfeito na poltrona, depois da
parada do almoço, pronto para a sesta. Havia gastado o único dinheiro na
comida. Estava aperreado de fome. O pai iria recebê-lo na rodoviária. A fome o
fez pensar. Agora estava de barriga cheia e satisfeito. Todavia, não conseguia
dormir. O ônibus balançava muito na estrada de lama e buracos.
Morava em Tucuruí com a irmã.
Zuleide é empregada doméstica na casa de um engenheiro da Hidrelétrica. Morava
com o marido e dois filhos e o irmão. Osvaldo é pedreiro, mas o serviço anda
escasso e pagando mal. Pensou inúmeras vezes em ir para Belo Monte. Zuleide em
hipótese alguma quer o marido longe. Se ele for, ela diz que fica viúva e
coloca outro homem dentro de casa. Ele não vai, não tem garantia de emprego e
não quer perder a família.
Nelson quer ir. Solteiro. Ensino
fundamental completo. Sabe escrever o nome e uma dezena de palavras. É um
exímio leitor de figuras. Não gosta muito de palavras, elas cansam e são
difíceis de entender. Trabalha desde os quinze anos em pequenos bicos e
serviços braçais. Morava com a mãe, o pai e um irmão. Depois que Carlos e
Sebastião arranjaram trabalho numa fazenda perto de Altamira. Eles haviam
trabalhado na construção da barragem. Hidrelétrica pronta acabou o emprego. Nelson
ficou sozinho com a mãe.
Um dia, lembra com clareza esse
dia, com a claridade de sua mente ainda infantil, a mãe já estava doente. Não
se sabia qual era a doença. Uma consulta estava marcada para três meses. Aguardava
como podia a consulta. Dona Ermelinda deitada na cama pediu água para Zuleide
que estava de visita. Nelson capinava o quintal, mato alto chama muito
carapanã. Sua mãe estava reclamando muito das picadas. Ele ouviu o pedido, mas
pensou que Zuleide fosse atender.
Outra vez o pedido. Nelson, todo fedido
de mato e suado, foi ver porque a irmã não atendia. Estava falando com uma
amiga no celular. Prontamente, mesmo sujo e fedendo, serviu um copo com água a
mãe. Obrigado, meu filho, Deus te conserve bom, ela agradeceu. Dois dias depois
ela morreu. Dormiu e não acordou mais. A irmã ainda sofre do remorso de não ter
dado água a mãe. Essa é a última lembrança nítida da mãe.
Nelson observava na poltrona do
outro lado do corredor, uma mãe amamentando o filho. Vinha à memória este
último contato e chorava. Considerava-se homem, mas era apenas um menino. Estava
indo ao encontro do pai e irmão, procurar um emprego, recomeçar a vida. Na
verdade, estava também fugindo de uma confusão.
Um dos seus bicos era ser segurança
em festas. Fazia mais um trabalho auxiliar do que realmente de apoio. Não tinha
tamanho e nem força para separar briga de bêbados. Recolhia os ingressos. A
boate era de um amigo do patrão de sua irmã. Álvaro gostava muito de Nelson.
Gostava do modo esforçado do menino
se fazer parecer homem. Uma vez a filha do dono da Boate chegou ao pai e
perguntou que aquele menino fazia junto aos peões da segurança. Ele disse em
tom de risada que o menino era homem, maior de idade, na carteira e no meio da
peãozada.
Sábado era o dia mais movimentado.
Estava tudo normal. Ninguém mais na portaria, na bilheteria. Quando Nelson
entra na festa e toma sua primeira cerveja, um homem bêbado e enfurecido corre
em sua direção, gritando que este filho da puta havia se engraçado com sua
mulher.
Ele não entende nada. Tudo é muito
rápido. O homem é gordo e pouco ágil. Quebra uma garrafa. No reflexo, Nelson
quebra uma. O homem fere o braço do garoto, e ele afunda os cacos pontiagudos
da garrafa na barriga macia do homem.
Não pensou muito, fez um curativo
no braço, pegou uma trouxa de roupa, comprou uma passagem com destino a
Altamira. Nem se despediu da irmã. Havia apenas vinte reais no bolso, gasto no
almoço. Cabelo ao vento, Nelson contemplava a estrada, via a paisagem de verde,
queimada e fumaça, enquanto estes pensamentos invadiam sua cabeça.
O ônibus diminui a velocidade. Mais
a frente passava uma boiada. Sentiu que eram bois devido ao cheiro de merda no
ar, um nuvem de esterco invadiu o ônibus. Um mal-estar geral, homens e mulheres
reclamam, crianças choraram. Nesta atmosfera, projetava com uma vida diferente
em Altamira. Queria ter uma casa, uma mulher e uma moto. Este era seu sonho. A
primeira coisa que faria ao pisar na cidade era se recrutar em Belo Monte.
O ônibus finalmente chega a
Altamira.
Dona Maria a vista um conhecido que
é taxista. Pega uma carona para casa de um dos filhos, busca um teto e sossego.
Mais não saí de uma cabeça: pai e mãe é bom, melhor é barriga cheia. Estava com
fome, filhos era bom, melhor era a barriga cheia. Vida agreste. Ainda não sabia
que os filhos trabalhavam na construção da usina e que haviam feito às pazes.
Num futuro próximo, ia provar, nos últimos dias de sua velhice, como era bom
ter filhos, obviamente em razão da barriga cheia. Enquanto durasse a
construção.
Seu Raimundo pegou a primeira
condução que fosse para Vitória do Xingu. A empresa ficava no caminho. Estava
ansioso com o novo trabalho. Novas instruções, uniforme com cheiro de limpinho.
Mas antes, arrumou um cigarrinho de palha. Entre os tragos, ligou para Socorro,
que atendeu feliz. Desligou e lembrou que precisava passar no Banco. Olhou a
aliança, tinha que transferir o dinheiro do mês. Pensou na velha, nos netos, na
família, devia muito as suas orações. Belo Monte lhe esperava.
Nelson esperava o pai que ainda não
apareceu. Sem dinheiro, sem amigos, sem conhecidos, sozinho, sentia-se
desgraçadamente abandonado. Lembrava-se da mãe e isso o consolava. Sentou-se de
cócoras perto da mala que continha todos os seus documentos e três mudas de
roupas. Seus documentos eram as coisas mais valiosas. A partir da foto, da
assinatura, dos números, ele existe para o Estado e sociedade. Seus braços e
pernas eram vigorosas forças de trabalho. Sua mercadoria na sociedade mediada
por mercadorias – força de trabalhão, salário, consumo. Viu um homem com um
uniforme. Era operário de Belo Monte. Estava a caminho do setor de RH. Foi
junto com ele e a esperança de ser recrutado. Uma casa, mulher, moto e calos
muitos calos faziam parte do seu futuro.
Há poucos quilômetros daquela
rodoviária, aterrissava um avião vindo de Belém. Aeroporto de Altamira. Mineiros,
cariocas, paulistas, gaúchos, catarinenses. Engenheiros, médicos, empresários,
advogados, profissionais liberais. Os representantes do Brasil que manda. Suas
vidas podem ser resumidas numa sentença: empreendedores de plenas capacidades
individuais a procura da felicidade. Tal qual uma peste, com o seu poder
empreendedor, esquadrinham as oportunidades, aproveitam-nas até a última gota.
Depois, partem em retirada, para novas oportunidades, novos empreendimentos.
Neste exato momento, os que mandam
e os que obedecem dividem o mesmo espaço. Empreendimento, barriga cheia,
emprego novo, um sonho. Todos parecem estar satisfeitos e felizes com Belo
Monte. Índios, ribeirinhos, danos ambientais não existem no texto, não existem
para Dona Maria, Seu Raimundo e Nelson. É o nosso progresso.
O resto dos habitantes deste país pelo
seu silêncio ensurdecedor, com a exceção de alguns cartazes e vozes roucas de
“Pare Belo Monte”, também querem a energia, querem o progresso, querem a
devastação sem proporções de Belo Monte. Como qualquer brasileiro, você deve
estar nesse momento indiferente, satisfeito ou feliz por estas atualizações de
velhas notícias ao sul Rio Bravo. Bem-vindo ao mundo realmente existente, no
qual a barbárie é ao mesmo tempo chata, tediosa ou motivo de risadas, tudo
dependente dos telespectadores e seu senso de humor. Ligue a televisão e
divirta-se.