I
Meu pai, naquele mês de outubro, um
dia qualquer, no apagar dos anos de chumbo, estava desempregado, dois meses
desempregado, não sabia o que fazer dos seus dias, desorientado das horas, o
dinheiro acabando, as contas vencendo. Mais um brasileiro.
Sem nenhum conhecimento econômico,
com razoável intuição para administrar o orçamento mensal, ele planificava a
economia doméstica, conseguindo manter em cifras positivas as despesas e a
parca arrecadação – estava na corda bamba, vendendo o almoço e janta para
comprar café e cigarro, como bom brasileiro, considerando nada engraçado.
“Mês fudido acaba logo”.
“Infelizmente viver é caro”.
O apartamento era minúsculo, uma
sala e dois quartos velhos com cheiro de mofo, as paredes carcomidas pelo tempo
e falta de manutenção, uma janela fornecia iluminação rasa através das cortinas
empoeiradas, uma caverna de cinquenta metros quadrados.
Naquele cubo, sua única
propriedade, constava de uma guitarra e pilhas e pilhas e pilhas de livros ao
lado da poltrona de estimação e do sofá-cama no qual costuma dormir, no quarto
uma cama de quase enfeite, uma escrivaninha largamente utilizada, uma janela
que iluminava a quase alcova e mais pilhas e pilhas de livros: Hemingway,
Faulkner, London, Whitman, Fante, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do
Rêgo, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Caio Prado Júnior,
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Drummond, Rubem Fonseca, Dalcídio
Jurandir, Eneida de Moraes, Florestan Fernandes, Machado de Assis, Aluísio de
Azevedo, José de Alencar, Dostoiévski, Kafka, Marx, Lênin, Malatesta, Proudhon,
Gramsci, Adorno, Walter Benjamim, Bakunin, Nietzsche, Hegel, Kant, Hume,
Pascal, Descartes, Spinoza, Hobbes, Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Tolstoi,
Gorki, Gogol, Turgueniev, Tchekhov, Saramago, Bocage, Gil Vicente, Lobo
Antunes, Miguel Torga, Eça de Queiroz, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho,
Tomás de Aquino, Erasmo de Roterdã, Thomas Mann, Herman Hesse, Goethe, Rilke,
Llosa, Lorca, García Márquez, Benedetti, Cortázar, Borges, Mariátegui, Rosa
Luxemburgo, Lênin, Trótski, Stálin, Cervantes, Dante, Joyce, Orwell, Dickens,
Melville, Blake, Rebelais, Moliére, Ibsen, Kanut Hamsun, Capistrano de Abreu,
Varnhagen, Padre Vieira, Virginia Wolf, Florbela Espanca, Simone de Beauvoir,
Sartre, Camus, Heidegger, Foulcault, Derrida, Delleuze, Guttarri, Simone Weil,
Hannah Arent, Anne Frank, Marguerite Yourcenar, Agatha Christie, Emily Brontë,
Clarice Lispector, Maria Lúcia Medeiros, e tanto outros livros, vários
tamanhos, diversas páginas, tempos, culturas, estilos, análises, narrativas,
histórias, estas pessoas de diversas línguas e nações habitavam conosco naquele
acanhado apartamento.
Por minha vez, o cômodo que
originalmente era uma biblioteca, havia uma janela que me informava sobre a
vida, meu catre desarrumado, um armário e mesa arrumados, as quinquilharias de
mulher e um número inferior de livros se comparado ao meu pai, anos luz a minha
frente em idade, rugas, barriga, cabelos brancos, inteligência, rabugice, humor
amargo, leitura e chatice que tanto me divertia.
Cravado no centro da cidade, é
daqueles prédios antigos, gigantes, funcionais, agrupados em quarteirões, se
vistos de cima, são assombrosos labirintos, verdadeiros cortiços armados em
concreto, simulacros da segurança da vida urbana, vidas empilhadas, andares
abarrotados, cubículos cheios de existências assalariadas.
Elas duram em função do aluguel,
artigos de necessidade básica: arroz, feijão e conservas, água, luz e televisão
no domingo, cigarros e cervejas baratos, roupas caras compradas à prestação, a
aparência com seus rótulos e etiquetas no limite do fim do mês. Meu pai zombava
da ignorância dos vizinhos: “É de uma bestagem sem tamanho”.
“O engenheiro que construiu esse
prédio, se enganou e levantou um canil. Esses cubículos só podem ter sido
concebidos para animais domesticados viverem neles, cada qual preocupado com
suas rações e, latindo surdamente entre si, os seus problemas. Eu não me eximo
da minha condição de cão: mas nem sempre sou amigo do homem – hahahaha” –
repetia inúmeras vezes, do tempo dos meus dez anos, que víamos a fachada do
prédio, e chegávamos ao corredor no qual o nosso apartamento ficava no final.
Demissão ideológica, mais uma para
o currículo, já não era novidade, o fracasso como perspectiva. Ele defendera
suas idéias, suas convicções, recusou à prostituição intelectual, seu caráter
não estava à venda.
Contrariou a prestação de serviço
na empresa chamada de “escola” na qual vendia algumas horas de vida vulgarmente
designadas de “hora-aula”, oferecendo formação humana aos alunos, ambicionando
fazê-los pensar, questionar, ver, reparar o mundo, um caolho lecionando em uma
terra de cegos que lhe odiavam.
Crianças mimadas, filhos da
cegueira, nascituramente idiotas, ele ensinava a revelia da pedagogia do
sucesso comprada pelos pais/responsáveis/consumidores para o mercado de
trabalho: fordismo nos bancos escolares.
“Sou signatário da paidéia grega na
formação integral e universal do indivíduo. Somente um indivíduo autônomo
intelectualmente, que saiba pensar como uma bússola, raciocinar de maneira
independente sem perder o caminho, pautado pela permanente dúvida metódica,
descontente com as respostas fáceis, é que se poderá encaminhar mudanças reais.
Somente o homem indócil transforma a si mesmo e o mundo” – era a sua pedagogia.
“E quem garante que a história
É carroça abandonada
Numa beira de estrada
Ou numa estação inglória
A história é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue” – Milton
Nascimento cantou sua forma de ver a História.
“A literatura é uma baioneta de
razões e sentimentos no campo de batalha dos corações e mentes” – a literatura
era uma das razões da sua existência.
Estou agora, sentada em sua
poltrona, bebendo o meu café turco. Ele sentava nela todas as manhãs, tinha o
estranho hábito de acordar cedo e dormir tarde. Um pão com ovo e café na janta
e no café da manhã– duas de suas refeições diárias.
Parecia uma coruja com rotundas
olheiras presas na armação dos óculos, o cabelo desarrumado de um sonâmbulo, a
roupa de dormir de sempre, tomando igualmente seu café turco e fumando
cigarros. Às vezes, estava semelhante a uma miragem, quando o olhava, naquelas
manhãs que não lembro bem nem dia nem ano nem nada, ainda com sono, antes de limpar
meus óculos.
“Bom dia, mais um dia, minha
filha”– ele dizia. Eu ficava feliz com o seu “bom dia”.
“Minha filha, veja mais café para o
seu velho pai” – ele sempre se considerava velho.
“Spasivo, minha filha” – e sempre
tinha que agradecer em russo, o pedantismo que eu adorava.
“Da svidania, filhota” – ele sempre
dava adeus com a mesma saudação em russo.
Era inconfundível o seu cheiro
amalgamado de tabaco e cafeína, eu sentia aqueles odores adentrado as minhas
narinas apontando a presença de um homem simples, um espírito do tempo de
gerações e gerações apossava-se de suas carnes com hábitos ancestrais, que nada
mais queria do que silêncio nas suas manhãs, o sossego necessário para pensar,
ler, beber, fumar e viver de maneira vagarosa, branda, lenta de habitar sua
poltrona.
Aquele cubículo que era o seu
Estado, seu feudo, seu latifúndio soberano frente as suas pernas magras sobre
pés ossudos vestidos de meias gastas tiritando às vezes nas manhãs frias, o
pijama puído e desbotado, cobrindo seu corpo consumido pelas décadas, a
poltrona antiga, herança de família, sob o chão de tacos de madeira com alguns
buracos dando testemunho de sua legítima riqueza, tal qual um quadro
xilogravado imortalizando as manhãs estáticas daquele homem.
Amanhecia lendo os jornais ou algum
livro. Assinava um jornal local, a Folha, o El País e o Granma. A opinião,
segundo ele, era fundamental para qualquer homem que quisesse ser considerado,
as pessoas sem posição não mereciam respeito, ao passo, que a opinião devia ser
constituída pelo discernimento, inteligência e a crítica bem formada de
diversas fontes de informação.
“Síntese de múltiplas informações”, ele
ponderava, qualquer julgamento que fugisse disso, significava para ele a mais
crassa burrice derivada da leitura de manchetes e orelhas de livros, que para
mim parecia o certo que a todos era ensinado, porém depois nos contatos com os
demais humanos, percebi o quanto aquilo era raro e antiquado no mundo das
virtualidades cômodas de bocas simpáticas que vomitam mentiras.
Toda vez, eu sempre esperava por
isso, ele comentava o que estava lendo, fazia alguma observação sumária ou lia
um trecho representativo, ininterruptamente finalizado com um olhar por cima
dos óculos, de caráter conclusivo – as palavras eram inúteis, o olhar dizia
tudo.
Eu emudecia perante a autoridade natural com a
qual expunha suas idéias, era rigoroso, preciso nas definições, quando
conceituais ou teóricas, quando histórico ou factual, era exato nas datas e
caracterizações de uma época.
Para ser mais claro, lançava mão de
metáforas que fixavam a idéia a uma imagem que jamais seria esquecida pelo
ouvinte atento, seu bom humor argumentado com um tom professoral, ao largo do
pedante ou arrogante, era simples, convincente, persuasivo e engraçado.
“Minha filha, aprenda uma coisa,
melhor, aprenda primeiro que na vida não se aprende nada, pode-se tirar algumas
lições, nada conclusivas, ou conclusões parciais, mas nada definitivo, a
aprendizagem é zero. Compreendido isto, saiba: a vida é ruim e injusta,
principalmente com os que acreditam, com os que amam, com os que sofrem e com
os que querem lições. É isso, é ruim e injusta. Mas existem algumas razões que
a fazem valer a pena: tu és uma das minhas razões” – meu pai me arrancava
lágrimas.
Ele nunca fora injusto nas suas
críticas, a consciência aguda com a qual sabia fazê-las, uma coisa que ele
sempre soube fazer, ponderava todos os seus elementos, com a honestidade
própria, considerava como algo fundamental, necessário, e cada vez mais raro,
portanto, devia ser propositivo e construtivo. Crítica pela crítica era melhor
ficar calado.
O gesticular nervoso, a fala
marcada, sempre pegando na barba, mexendo no cabelo amarrotado, singularidades
daquele homem que eu olhava amorosamente, que me arrebatava de orgulho.
Essa torrente de lembranças e os
seus respectivos sentimentos colonizam a minha memória toda a vez que sento
nesta poltrona, eu ouço sua voz, eu sinto a sua presença, a dor da saudade
fisga com mais força o meu coração.
II
Viveu por dez anos em Cuba. Sempre
que falava do que viveu, ouviu e observou na ilha, relatava com entusiasmo das
experiências produzidas pela Revolução, nunca moderava nas críticas,
contundentes críticas.
O problema do abastecimento, os
racionamentos que acossavam a população, mesmo que ninguém passasse fome, eram
episódios que lhe impressionavam, assustariam qualquer pessoa vinda das
exuberâncias do consumo.
Certa vez, chegara à casa que havia
alugado por um preço módico, cansado e com dor de cabeça, após um dia de
passeios por Havana, foi a uma farmácia comprar um sabonete e aspirinas. O
atendente, um homem de meia idade, negro altivo, cabelo grisalho, de
cavanhaque, atrás de um par de óculos redondos, perguntou sobre a receita.
“Receta? Mi querido, estoy cansado
y tener dolor de cabeza, sólo quiero una aspirina y un jabón, complacer” – com
uma voz ligeiramente grosseira.
“Compañero”, ele começou,
explicando com admirável paciência aquela altura da noite, que a venda de
qualquer produto da farmácia era necessário uma receita, era indispensável à
orientação médica prescrevendo o remédio na quantidade correta para a sua
respectiva doença.
Ele assombrou-se com aquilo,
imediatamente, perguntou ao atendente, colocando a prova ceticamente à
informação dada, onde conseguiria atendimento médico às onze horas da noite de
sábado.
Com um sorriso no rosto e
inconfundível orgulho, o homem negro, de aspecto cansado, indicou que na
próxima esquina havia um posto de saúde com médico de plantão, todos os dias da
semana, inclusive aos domingos – meu pai sempre exclamava os domingos, quando
contava, acentuando o quanto terrível que era para nós brasileiros a realidade
cubana.
Meu pai empreendeu dez passos
largos e rápidos dá mais ávida curiosidade, chegou à próxima esquina, um posto
de saúde aberto, luzes acesas iluminavam a fachada, na entrada, um casal negro,
fumando, conversavam distraidamente, fazia frio e ventava muito naquela noite.
Conversou com ambos e entrou. Eram
o médico e a enfermeira de plantão. O médico confirmou as informações dadas
pelo farmacêutico, complementando, com igual orgulho e entusiasmo, que esta era
uma das dimensões da política preventiva de saúde.
Por exemplo, citava o médico,
explicando calmamente, os charutos e cigarros são vendidos de maneira
racionada, cada cubano, se fumante, tem direito a três charutos e duas
carteiras de cigarro, qualquer quantidade superior, o preço é sobretaxado –
temos conseguido combater com número significativo as doenças advindas do fumo,
arrematava o médico.
Meu pai agradeceu ao médico as explicações
e saiu do posto com a receita. Retornou a farmácia, comprou as aspirinas e o
sabonete.
“Compañero, así es como funcionan
las cosas en la isla, saludos” – despediu-se o farmacêutico.
“Hasta luego!” – disse meu pai.
Entretanto, meu pai advertia, com
amargura na voz, nem tudo funcionava perfeitamente na ilha. Talvez o
racionamento funcionasse para o consumo do charuto e cigarros, mas expunha
graves problemas no que diz respeito alimentação. A quantidade de alimentos
destinada para cada família, na maioria das vezes, não era o bastante para a
guarnição mensal.
Ninguém passava fome, mas passava
aperto. Meu pai não concebia que uma economia planificada previa que seus
cidadãos passassem apertos, o planejamento era necessariamente para evitar
apertos, concluía: havia algum erro nas terras de Fidel.
Segundo suas observações, a falta
de planejamento não se restringia ao racionamento. A infraestrutura das
cidades, sobretudo as do interior, sofria de igual imprevidência. O saneamento
básico não era um problema nas capitais das províncias, de acordo com os
relatos que ouvia nas praças de pessoas originárias de cidades no interior,
havia muitos problemas de doenças advindas da falta de saneamento, como cólera,
difteria, tifo.
Estes camponeses, em sua maioria,
trabalhadores das lavouras de cana, todos alfabetizados, alguns estudando e
outros com a escolarização encerrada, afirmavam ser necessária a interiorização
dos ganhos da Revolução para as cidades, localidades e vilas mais remotas,
muitos problemas precisavam ser resolvidos, especialmente os relacionados à
saúde e infraestrutura, mas tinham certeza que era questão de tempo a sua
resolução. Esta esperança contagiava o meu pai, que dizia isso com largo
sorriso no rosto.
A diversificação de setores
econômicos era outra questão que observou nos anos que habitou na ilha. A
formação de um mercado interno promovido pela indústria e terceiro setor ao
lado das atividades agro-exportadoras, acreditava ele, poderia ser um
estratégica econômica que promovessem maior autonomia frente às relações
bilaterais com a URSS e enfrentasse o embargo americano.
Sem essa autonomia política e
econômica, o extraordinário produzido na educação, erradicando a analfabetismo,
ao lado da saúde, referência na medicina preventiva e tratamento de doenças
tropicais e vitiligo, junto às ruas sem crianças abandonadas, sem tradicionais
favelas sul-americanas e caribenhas, com pessoas jogando xadrez nas praças de
Havana, se perderiam no cotidiano das necessidades materiais não satisfeitas, a
ignorância do consumo acerbo sempre rondava os estômagos e mentes – meu pai
advertia.
“Esta experiência humana, que a
maioria conhece dos manuais de história como Revolução Cubana, eu vi e
respirei, ouvi e admirei, por seus ganhos e avanços, ainda torna-se defensável.
Porque eu só consigo defender algo que se sustenta de maneira defensável. Não
há ideologia que vá de encontro com a realidade. A ideologia pode transformar a
realidade, no momento que movimenta músculos e sonhos. Todavia, ela não se
sustenta quando quer manter mentiras, salvo quando é a própria encarnação da
mentira” – meu pai pensava.
A Glanost, a Perestroika, o
seu semblante entristecia, com voz firme e lúcida, quando narrava que foram
processos necessários, o socialismo realmente existente não era socialismo que
ele acredita e desejava, junto a ele, outros milhões assim acreditavam, foram
os golpes finais na burocracia stalinista que desfigurou todos os ideais e
projetos de um povo, de uma geração, de um tempo, de um breve século.
A restauração do capitalismo
tornou-se tão ambicionada pelo soviético comum, ter sua força de trabalho
explorada em troca do mundo de consumo ocidental transformou-se em um sonho, o
sonho americano, o sovietic way of life,
ao invés de sustentar uma nomenklatura, uma gerontecracia encastelada no
Partido, investindo as forças humanas do seu povo em tecnologia bélica e
espacial de ponta em troca de quilométricas filas no frio cortante e punitivo
das grandes capitais da URSS, com medo de dizer que a vida estava impraticável
e ser sumariamente morto nos porões infectos da KGB.
O russo médio aspirava por
desfrutar de sua vodka em paz assistindo a roda da fortuna na sua televisão
italiana, quente pelo aquecedor alemão, com o McDonald na esquina, instado por
intervalos intermitentes de tempo a votar democraticamente para manter estas
conquistas vindas do leste, o ocidente tinha vencido: todos haviam se
transformado em consumidores da economia de mercado e cidadãos de democracias
liberais – ele não se arriscava dizer até quando essa ilusão se sustentaria,
com pés de barro do consumo, as mãos de bronze do trabalho explorado e a cabeça
de ouro da liberdade, democracia e justiça.
O tempo que talhou aquele homem de
maneira dura e cheio de ternura, seja nas crenças e esperanças, seja no
ceticismo e desalento, seja nas roupas e maneira de falar, seja no modo
extemporâneo de ser, deslocado, inadaptado, ainda escrevendo a mão ou na
máquina de escrever, pedindo meu auxílio para utilizar o computador ou mandar
um email.
“O formigueiro esmagador do
indivíduo nomeado de socialismo real fora inexoravelmente substituído pelo
campo selvagem do mercado dominado pelo lobo individual e suas alcatéias
vulgarmente chamado de capitalismo. O nosso tempo representa a supremacia do
liberalismo como fim da história, quero estar vivo para ver a sua derrocada, na
mesma medida que testemunhei com meus olhos o histórico onze de setembro ao
vivo pela televisão” – meu pai pensava.
III
Abandonado pela mulher, humilhado,
gritado na cara: brocha, pobre, fudido. Também não era novidade, mais uma
frustração na lista. O amor era cada vez mais uma palavra abstrata, genérica,
sem significado ao seu coração, largamente gritado a sua razão pela vulgaridade
sentimental alheia. Trocado por um decrépito infante que tinha como qualidades
um vencimento mensal e ficar de pau duro.
Um daqueles idiotas funcionais, de
escolaridade parca, déficit de leitura, sem saber a tabuada dos nove, para o
qual democracia é votar no político que rouba mas faz, e ter orgulho de não
gostar de política, ter orgulho de ser cego, dedicado ao trabalho técnico, um
braçal da tecnologia, um animal sedento por fodas, por pernas abertas, mentes
fechadas, um gozo de nove segundos, uma ave de rapina a procura de carne
fresca.
Um legítimo pária da multidão de
acéfalos que movem o mundo, um autêntico exemplar da espécie, de incontáveis
outros exemplares, aos milhares, aos milhões, de comportamento padronizado,
massificado, uniformizado que nos, sim, a nós todos, arrastam para o eminente
colapso: uma hecatombe da propedêutica generalizada. Eis o futuro em suas mãos:
uma geração de mentecaptos guiados pela lei do menor esforço.
A mãe doente, necessitando de
cuidados, ele, o único filho hábil para dar assistência, mesmo desempregado, e
seu único irmão, o que restou, o mais novo, morando com ele de favor, um fardo,
vagabundo e viciado.
As relações familiares
representavam uma obrigação consanguínea que fazia questão de honrar,
acreditava por alguma razão sobrenatural, existia um compromisso tácito na
medida em que os laços de sangue eram irremediavelmente diretos.
Ele era o mais velho, de três
filhos, de três tentativas fracassadas de trazer uma menina ao mundo, um menino
e uma menina, um casal, era o objetivo dos pais: uma família idílica das
propagandas, da qual o resultado fora três machos tristes, numa família
igualmente triste.
Seu pai e o irmão do meio haviam morrido num
trágico acidente de carro. O pai era espinha dorsal da casa, soturno, justo,
generoso, severo, mantinha a ordem, a estabilidade.
Com sua morte, o corpo familiar se
esfacelou, sem base, sem sustentação, transfigurado, amorfo. A viúva mergulhou
na loucura, sucumbindo a uma depressão profunda, oscilando severamente entre
estados de lucidez frágil e a obscura desrazão de surtos psicóticos.
Ela amava-o com uma devoção
fervorosamente religiosa, era uma iniciada nos mistérios daquela esfinge,
daquela estátua da Ilha de Páscoa, de um magnetismo avassalador, que lhe dava
várias razões para viver, para o bom viver, para encontrar incontáveis prazeres
nesta vida.
Mesmo que para todos não parecesse
ter qualquer valor, ela, dos véus, das brumas, das alcovas da intimidade, sabia
do valor daquele homem que por trinta anos compartilhara a vida na mais
completa plenitude.
Se eram felizes, isso realmente não
lhe importava, só lhe interessava estar ao seu lado, dando-lhe todo o seu amor,
e se fosse o caso, amando pelos dois, porque, para ela, ele era a vida.
No lugar da estabilidade da sua
compleição instalou-se um vácuo, um vazio desolador que seu rosto denunciava a
primeira vista, a vida que se constitui por anos se esvaiu tal qual uma
ampulheta quebrada, vida marcada, regrada, delimitada pelo pesar da areia que
ficou ao encargo de cada um, sumiu o centro irradiador da ordem daquela casa.
Depois do acidente, morava com o
caçula até o ano passado, viciado, roubando-lhe tudo, despeitando-a, pediu ao
mais velho, ao filho que restou, que lhe desse ano de velhice tranquilos, meu
pai nem pensou, enviou dinheiro a mais do que mandava todos os meses, compraram
a passagem, herdou o fardo de sangue.
“Que vida de merda, tenho que me
organizar, são muitas demandas, problemas, tenho que pensar soluções, tenho que
pensar, sempre tem saída”.
Segunda-feira, seis e meia da
amanhã, batem na porta. Choro de criança, ele estranha. “Criança chorando, uma
hora dessas da amanhã”. De ressaca, vai à porta. Um cesto de supermercado,
forrado por uma sacola plástica: um bebê envolto numa fralda suja e um bilhete.
“Cuide desta vida, eu não posso, eu não quero, a vida é injusta. Faça justiça a
esta criança. Deus lhe pague”. “Mãe filha da puta”.
Depois, minutos depois, limpou-me,
percebendo ser uma menina. Ficou estupefato, sua ressaca passou na hora. Não
acreditava naquilo. Parecia um sonho, um pesadelo, não sabia o que pensar, não
sabia.
De concreto, uma criança a seus
pés, chorando, suja, abandonada, uma criança, nos seus braços, um ser humano,
abandonado, uma criança, limpa, uma menina, tratada como um animal. Um filhote
humano da insensatez, uma cria descartada da barbárie, menos uma menina num
mundo misógino.
“És a rosa vermelha que a mim foi
dada pelas mãos do estrume chamado humanidade”– ele sempre me dizia, antes de
um afago, simples, recatado, levantando o cabelo da minha nuca e roçando o
nariz nela, que me tocava a alma.
Ainda estava frio, pegou a cesta,
levou para dentro da casa, sem saber o que fazer, uma criança. Tinha alguns
meses, limpou como pôde, em meio aos choros que lhe desesperavam, com uma
camisa cobriu-me, quando me viu tranquila, serena, terna, sem choro, dócil, um amor
avalassador invadiu seu coração. A única coisa que pensou: “Minha filha”.
Meu pai era professor de
literatura. “Minha filha, sempre me dás muita sorte”, ele dizia com tom
anedótico. “Depois que te encontrei, a minha sorte mudou”. Desde cedo, deu-me
ciência, era filha do seu coração, escolhida, muito amada. Nunca duvidei disso.
Em novembro, conseguiu emprego. Com o primeiro salário, internou o irmão,
custeou o tratamento da mãe, comprou um berço e roupas para criança.
“Me dás sorte, minha filha, minha rosa
vermelha”.
A minha infância foi pródiga para
uma menina. Meu pai nunca me tratou como uma menininha, sua princesinha, me
vestindo de rosa e enchendo de mimos e todas essas frescuras que inferiorizam
as mulheres do berço.
Criou-me a sua imagem e semelhança:
forte, obstinada, justa. Ensinou-me a ler e escrever. Entrei na escola três
séries a frente da minha idade. Era sempre a menor da turma. Sozinha, não me
agregava, todo mundo era idiota, demasiadamente idiota. Destacar-se com boas
notas foi uma consequência natural.
Na cadeira de aluno só me fiz
notar, além das notas e perguntas que espantavam os professores, nos bancos
universitários: um problema apresentado algumas vezes era verdadeiramente
respondido – algumas vezes. A única coisa que aprendi lá: conhecimento não
melhora ninguém, só ensina a ser pior com erudição e aporte teórico.
No primeiro grau, eu gostava muito
de matemática, funções do primeiro e segundo grau, trigonometria e toda aquela
xaropada. Nas vezes que ia tirar alguma dúvida com meu pai, era muito engraçado
ver o seu rosto de dúvida, o roçar a barba, ajeitar o cabelo em sinal de
dúvida, não saber nada ou não lembrar bem, sempre dava desculpas: “é a idade
minha filha, é a idade...” – como sabia que ia acontecer, gostava de vê-lo embaraçado.
No entanto, ele se esforçava
estoicamente para responder, tirar as minhas dúvidas, dirimir as questões.
“Ouça seu pai, minha filha, está tal de fórmula de Bhaskara, e olha que estou
adiantado em anos, nunca me serviu pra nada na vida. O que quero dizer é:
estude ela, mas não estude tanto... hahahaha”– meu pai saindo de uma situação
vergonhosa.
Por volta dos onze anos veio a
menarca, lembro bem: estava em casa, estudando no meu quarto, janela aberta,
vento entrando, temperatura agradável, de saco cheio lendo alguma coisa sobre
figuras de linguagem para a prova de Português. Uma dor na barriga, estava de
saia, olhei para a minha calcinha molhada de sangue. Fiquei desesperada, pensei
que havia me machucado, que estava morrendo, sei lá, nunca tinha visto tanto
sangue.
Liguei para escola que ele
trabalhava. Dez minutos depois chegou em casa. Ofegante, desesperado, não sabia
o que fazer também, com uma alegria preocupada. Depois se acalmou. Pediu para
eu tomar banho. Fui à doutora Laura no outro dia. Ela nos orientou sobre o
ciclo menstrual e as mudanças no meu corpo – até hoje ela é a minha
ginecologista. Anos depois, pensando nisso, lembrando essa situação, fui
perceber a alegria e a preocupação do meu pai naquele dia: estava me vendo
virar mulher.
No outro dia, meu pai e seu olhar
orgulhoso, quando chegamos da médica, me deu três livros: “Dom Quixote”, “Os
Irmãos Karamazóvi” e “Quincas Borba”.
E depois me disse:
“Minha filha, agora que estás
virando mulher, na verdade, agora que és uma mulher, estás te transformando em
uma mulher em carnes, é necessário que conheças a vida, nestes três livros tens
um manual de instrução básico” – nunca me esqueço disso, naquele dia fiquei
feliz com os presentes, ainda infantil, mas hoje, meu coração fisga mais, mais,
mais apertado pelas mãos calejadas da saudade, açoitado pelas lembranças.
Sento na sua poltrona e tomo um
café turco. Não conheci meu avô e um dos meus tios, mortos no acidente de
carro. Não conheci minha avô que morreu a dois anos de derrame. Não conheci o irmão
mais novo do meu pai, morto por uma overdose de cocaína. Meu pai era a única
família que conheci, o único laço de sangue genuíno criado por mãos humanas.
Ele era a planta que me alimentava:
uma rosa vermelha repousada num solitário. Ceifada que sou hoje, as lembranças
em me regam, as memórias me sustentam, a rosa vermelha que precisa se
transformar em planta. As raízes da realidade querem me fixar no chão de
concreto para o qual eu não fui feita para viver, mesmo que tenha sido
diligentemente ensinada pelo meu pai.
IV
Hospital Psiquiátrico “Erasmo de
Roterdã”.
Três horas da tarde.
No consultório, uma mulher de
branco e um homem vestido modestamente.
“Boa tarde. Desculpe o atraso. É o
trânsito infernal dessa cidade” – mentira, estava transando com uma aluna e
perdeu a hora, vinha corroído pelo remorso do atraso.
“Boa tarde. Sem problemas. O senhor
chegou pontualmente” – tanto faz, se ele chegasse cedo ou tarde, esse é um caso
sem solução, como tantos outros na carreira.
“Que bom, detesto atrasos. Sobretudo,
os meus” – pelo menos era sincero.
“Compreendo. Então, sou a
psiquiatra que está acompanhando o caso de sua filha. A anterior saiu de
licença, portanto, daqui em diante eu acompanho o caso”
“Algum problema com ela?” –
fingindo se importar, como fingia em situações sociais, como manda a etiqueta
da boa sociedade.
“Não justificou” – sabendo que não
se importa, nem ela mesmo, uma resposta formal.
“Huummm” – um ruído qualquer como
resposta na falta do que dizer.
“Então, eu li último relatório e o
tipo de tratamento que ela estava submetendo a paciente. Não tenho como avaliar
agora. Contudo, acredito que estava sendo adequado, de acordo com os sintomas e
os distúrbios apresentados. Ainda é cedo para eu apresentar a minha posição.
Diante da mudança, o que posso dizer é que vi casos piores. Talvez essa seja
reversível” – palavrório técnico aprendido em anos de profissão, sobretudo a
habilidosa capacidade de mentir diagnósticos para ver esperança nos olhos de
parentes e familiares, sadicamente pensado.
“Prefiro aguardar. Já perdi as
esperanças” – frustrou-se com este incrédulo filho da puta.
“Pelos delírios e as palavras
soltas que, segundo o relatório diz, posso depreender que sua filha lhe amou ou
ama muito” – insiste, explorando sadicamente as emoções.
“Desde a primeira vez que a vi nos
meus abraços, em circunstâncias que depois esclareço, eu a amei imediatamente.
Por que a senhora diz isso?” – lembrando-se da vida e curioso pela estranheza
do que havia ouvido.
“O relatório apresenta diagnósticos
detalhados, copiosas descrições comportamentais e vários níveis de tratamentos
pautados em uma complexidade de delírios lapsos de memória e diversas
alucinações expressos a partir de duas palavras” – de propósito inconclusiva.
“Quais? Quais?” – ávido de curiosidade.
“Meu pai” – sentenciou secamente.
(Felipov)