Ontem escrevi o meu primeiro texto
na máquina de escrever. Foi um pouco difícil. Duas laudas com as trivialidades
que escrevo. Uma história triste com final ruim. Mas foi prazeroso. E um
exercício importante. Na máquina é mínima a possibilidade de erro. Consegui
organizar melhor o pensamento e escrever de um fôlego só. Aliás, tenho a
impressão de que escrever na máquina torna a escrita mais real. Nos últimos
tempos tenho procurado o real na ficção. Abandonei a academia. Ostracismo voluntário. Por mais que eu
gostasse daquele ambiente – das discussões, dos estudos, enfim - não me via
mais representado junto àquelas disputas mesquinhas e debates sobre qualquer
coisa, menos o real. Prefiro a literatura. Ela é muito mais real pra mim. Uma
unha encravada. Cheia de pus, dedo roxo, unha quase caindo. Puta que pariu,
como essa porra dói, nunca mais corto a unha na pressa, aquele unhex todo cego,
é isso que dá deixar tudo pra cima da hora. É Jorge, tem que se fuder mesmo;
agora aguenta, viadinho. Só os gordos sabem da missão hercúlea que é cortar a
unha do pé, ou amarrar os sapatos. Porra, eu estou ficando muito gordo, daqui a
pouco não vou ver nem meu pau mais! Toma jeito, Jorge, toma jeito. Mas quando
pensava nisso, ficava tranqüilo; ela aceitava suas imperfeições, ela o amava. Ele
a amava. Coriza, sinusite, renite, poeira, pó, fumaça, nariz em desgraça,
aquela edição antiga, comprada semana passada num sebo qualquer; folha amarela,
capa solta que colou com fita durex - cinco reais, uma pechincha, não podia
passar. Foi todo o dinheiro do ônibus, voltou andando para casa. Ele precisava
mesmo, sedentário mórbido. Estava feliz pelo livro, a caminhada compensou,
ficou até mais tarde ontem lendo – “Dias na Birmânia”. Égua, Orwell é um cara
admirável, um cara que nasceu raro, um daqueles escritores que dá vontade de
ler toda a obra. Pendurado no cheque-especial. Deve cinco mil reais no cartão
de crédito. Luz, água, telefone, atrasados. Porra, eu queria ter nascido na
primeira metade do século XX, ter vivido naquele tempo, viver duas guerras
mundiais, uma guerra fria, matar filhos-da-puta, ter levado um tiro, talvez me
fizesse mais homem, e não esse pária frouxo que eu sou. Morava só. Formado em
Filosofia. Trabalhava na prefeitura, auxiliar administrativo - dois salários
mínimos. Quatro anos lendo os primores do pensamento humano, conclusão: o amor à
sabedoria não paga contas. Kant foi uma das maiores perdas de tempo na minha
vida. Apesar de tudo, Jorge era feliz. Estava lendo Orwell e amava perdidamente
sua namorada. Conheceu-a nas filas do R.U. Ele estava concluindo, ela era
caloura em Metereologia. Apaixonou-se de primeira. Três meses depois, estavam
namorando. Ela foi difícil. Ele teve o prazer da conquista. Ela cedeu pela
insistência e inteligência. Isso faz dois anos. Depois que se formou, saiu de
casa, queria ser independente, dar aula, viajar e ser escritor. Enviou
currículos, pediu indicações, nada. O amor ao pensamento era desprezado no país
de Sarney. Sócrates se exilaria para o Hades. Fez o primeiro concurso que
apareceu. Passou. Sua vida era dedicada a seis horas de trabalho, dois dias de
trabalho em um cursinho pré-vestibular na periferia. Ler, escrever, beber e
amar Walquíria. Às vezes saía com Marcelo, seu amigo dos tempos da faculdade –
um dos seus raros amigos. Com ela, tudo era sinônimo: alegria, felicidade,
contentamento. Apesar de naturalmente triste, ela era sua alegria. Marcelo era
seu chapa, aquele cara que sempre podia contar, apesar de alguns hábitos
estranhos, como gostar muito de futebol e colecionar camisa de time. Estranho, mas
legal. Vez por outra, ele quebrava uns galhos para Jorge, por exemplo, uma vez
ele ficou doente e não teve como ir dar aula no cursinho; prontamente Marcelo
resolveu. Enfim, era aquele cara que podia se contar. Ele namorava com a
Jéssica, uma amiga da Walquíria. Jorge não a conhecia muito bem. De quando em
quando, saíam os quatro juntos. Era divertido. Mas Jorge gostava mesmo era de
sair apenas Marcelo e Walquíria. Isoladamente, é claro. Percebia que quando saíam
os três, havia algo de estranho que ele não sabia explicar, mas algo de
estranho acontecia. Jorge nunca se perguntou mais afundo o razão deste
mal-estar. Deixou pra lá. Estava feliz. Amava Walquíria, e ela o amava. E
estava lendo Orwell. Marcelo, tens que ler George Orwell. Ele é um cara
admirável. Nunca vi ninguém escrever algo tão real, tão verdadeiro, tão próximo
de suas crenças pessoais. Um cara que sempre procurou ter uma postura
renitentemente honesta e decente. Conversa de bar, duas cervejas. É mesmo,
Jorge, já vens um tempo falando dele mesmo; quando terminar, me empresta. No
momento, não estou lendo nada, o meu tempo todo está sendo dedicado a planejar
aula e corrigir prova, uma merda. É, rapaz, uma merda mesmo, suga todo o teu
tempo livre; por falar nisso, essa é uma coisa que tenho pensado ultimamente:
cada vez mais temos perdido nosso tempo livre, percebeste que nunca temos tempo
para fazer o que realmente gostamos? Vivemos sempre em função de carga horária
de trabalho. Rapaz, isso não é vida. Cara, é isso mesmo, foda mesmo, mas é
necessário sobreviver, ganhar esses trocados e tocar pra frente. Outra coisa
que tenho pensado muito, Marcelo, é sobre honestidade. Cara, o Orwell tem me
feito pensar muito sobre isso, sabe, de ser absolutamente honesto em tudo na
tua vida, de ir contracorrente mesmo. É, Jorge, concordo contigo, o foda é que
tens tempo para pensar, nem isso eu estou tendo; tenho vivido no automático
ultimamente. Tu, eu e o resto da humanidade, pelo visto. É. Garçon, bote mais
uma aqui. A vida seguia seu transcurso natural. Apesar das reflexões, Jorge
considerava-se feliz. Ele amava Walquíria. Toda vez que se sentia triste, era
só pensar nela, e tudo ficava melhor. Ele sempre lembrava um trecho de
Sófocles, de uma obra que sempre esquecia, que dizia que o único alívio para a
dor e o sofrimento inerentes a existência era o amor. Isso fazia muito sentido
para ele. Jorge estava juntando um dinheiro. Planejava há três anos uma viagem
pela América do Sul. Queria dar de presente no aniversário de Walquíria. Os
dois locos pela America. Para isso, privou-se de
várias coisas - economizava nos mínimos detalhes, compra tudo mais barato, até
a cerveja. Ela ainda morava com os pais, mas tinha a chave do apartamento de
Jorge. Praticamente viviam juntos. Depois da viagem, ele pretendia pedi-la em
casamento. Ele era um cara tradicional em algumas coisas, queria ter família e
filhos. Não há sabedoria no que penso, no que digo, no que escrevo. São apenas
devaneios. São apenas escritos à marteladas cingidas pela minha obscura
consciência. O sentimento amoroso é uma das maiores razões da ruína de um
homem. A sua derrocada completa estava assentada no contentamento do amor. O
ocaso em acreditar-se feliz. O desespero da paixão fazia-o viver, pleno,
vigoroso, atento. Ele estava amando. Ela foi a sua derrocada. Égua, acho que
isso tá ficando bom, está melhor que aquele que escrevi outro dia; de qualquer
maneira, serve para exercitar o pensamento nas teclas. Tenho que comprar óleo
lubrificante, estas teclas são duras que nem o diabo. Péssimo dia de trabalho,
não via a hora de chegar em casa, comer, tomar banho, descansar um pouco, ligar
para Walquíria, saber do seu dia, da sua vida, e escrever alguma coisa para
ela. Seria seu primeiro texto sobre amor. Por sorte, fora liberado mais cedo no
trabalho. A porta estava aberta. Walquíria estava em casa. Uma surpresa. No
quarto, ela estava arrumando suas coisas, estava indo embora da sua vida.
Desculpe, Jorge, estou indo embora, estou apaixonada por outro cara, um
professor da faculdade - um homem de verdade, adeus. Ela saiu, sem dizer mais
nada. Ele ficou sem entender porra nenhuma. Resignou-se. Tomou uns porres.
Falou com o Marcelo. Ele, como amigo, aconselhou: isso acontece, esquece isso,
bola pra frente, é assim mesmo. Passou um mês. Ela se arrependeu, viu a merda
que fez, foi chutada pelo cara mais velho. Usada, sentiu saudade de Jorge e
percebeu a dimensão do seu amor por ele. Quando entrou em contato, ele já
estava no exílio. Agora eram só ele, a máquina de escrever e a América do Sul.
segunda-feira, 25 de junho de 2012
sexta-feira, 8 de junho de 2012
O homem e a sua dor
I
“Penso, às vezes, tão somente, às vezes, que tudo
aquilo que fazemos na vida, os erros cometidos, as escolhas feitas, os
encontros, os desencontros, as ausências, as cobranças, enfim, todas as merdas
que aconteceram, poderiam de alguma forma, malgrado a nossa vontade, tomar um
rumo diferente. Entretanto, questiono-me, o que seria de nós agora, no estágio
atual da existência, se nossas escolhas fossem diferentes daquelas passadas.
Fico razoavelmente triste. Estas imponderabilidades me deixam triste. Depois,
percebo que isso é inútil. Vou beber, ler, fumar, trepar – fazer a vida valer
alguma coisa”
“Essas dúvidas, dentre inúmeras outras, golpeiam os
meus pensamentos. A esta altura da minha vida, ainda encontro-me a deriva. Não
é perdido, só os fracos consideram-se perdidos. Estou a deriva. É difícil
definir isso. É o que sinto, apenas. Talvez seja um sentimento de covardia
daquelas pessoas acomodadas, que sabem quais são os seus problemas, que sabem
dos problemas do mundo, que sabem o que devem fazer, ao menos, em hipótese,
para mudarem suas razoáveis existências para algo menos medíocre. Sem
lamentações estéreis. Sem resmungos inúteis. Sem críticas razoáveis destituídas
de ação. Eu sei disso. Todavia, a dor me consome. A dor me imobiliza”
O homem e a sua dor merecem respeito. Ele carregava
em si o fardo de uma vida de frustrações, desilusões, fracassos, derrotas.
Atrás daqueles óculos de grossas lentes, um tanto
desgastado pelo uso excessivo e ignorando a necessidade social de renová-lo, um
tanto anacrônico diante da intempestiva atualização da moda, havia uma visão
turva, míope, nebulosa, por vezes, invertida, de cabeça para baixo, da vida
presente, da vida futura – o passado não lhe pertencia, não lhe interessava.
“Eu tenho que trocar a merda destes óculos. Ora
porra, depois eu faço isso. Quando fizer o supermercado, faço isso também,
coloco o lixo pra fora também, e lavo roupa também. Porra, tem um monte de
coisa pra fazer. Tenho coisa mais importante pra fazer: contemplar o nada”
Atrás daquela barba desvalida havia um rosto fincado
pelos anos, pelas rugas que protestavam os raros sorrisos, alegrias,
felicidades, rasos, pequenos, ínfimos, esmagados, soterrados pela impiedade da
vida, diante do pranto, desventura, expressão impávida, cerrada, de quem impõe
respeito de uma esfinge pelo penetrante padecer registrado nos logradouros da
alma.
“Foda-se estas roupas, eu gosto delas, depois eu
tiro essa barba – olhando-se no espelho, arrumando-se para o trabalho. Porra,
mas tenho que comer melhor, senão vou fuder a minha saúde, e correr um pouco,
estou virando um espantalho... hahahaha... um espantalho... essa foi boa”
Atrás de suas roupas desgastadas, puídas, velhas
havia um corpo magro, decrépito, esquálido, resultado direto dos anos, da vida,
do sofrimento. Aquelas externalizações declamavam silenciosamente com a voz
grandiloquente das tragédias gregas a tristeza da sua existência.
Sua fronte depunha contra a descrição dos seus atos.
Reservado, fechado, lacônico, agressivo, irritado, taciturno eram expressões
invariáveis que definiam o seu ser no mundo, aquele espectro corcunda
imperceptível, invisível, insignificante.
Seu olhar transcrevia longamente o que a vida havia
lhe reservado, mesmo que seus olhos esquadrilhassem permanentemente o chão,
nunca encarava ninguém a altura dos olhos, não se importava com o infortúnio
alheio que gritava com a voz intimorata de desespero dissimulado encravado no
olhar tácito de rostos cheios de dentes arreganhados.
“Lixo humano. Um amontoado fétido de lixo humano. Eu
também sou lixo. Bem fedorento e feio, por sinal. Mas ainda me considero por
alguma razão que me escapa agora minimamente reciclável. Aquelas vidas
plásticas, perfeitas, moldáveis, rotuláveis, produzidas em massa, consumidas
pela felicidade enlatada dos comerciais de refrigerantes, vão apodrecer
milhares de anos que duram algumas décadas de suas vidas em aterros sanitários
do trabalho, da igreja, da família, dos amigos, das festas, dos amores, enfim,
até que chegue o derradeiro momento da decomposição completa e inicie-se o
ciclo novamente. Talvez, seja esse o sentido da vida. Fouda-se”
Tentara utiliza-se destes artifícios nos tempos da
remota idiotia que lhe rondava a vida, constatado a esterilidade do ato, julgou
mais inteligente e sincero consigo mesmo assumir a sua miséria. Fumava seu
cigarro como se fosse seu único amigo. Bebia sua cerveja ignorando com
insofismável satisfação a sociedade.
“Comandante, bote uma cerveja da pesada e um maço do
seu cigarro mais caro”
“Tudo bem, chefe”
Skol e um maço de Derby.
“Porra, eu pedi o cigarro mais caro, e não essa
porcaria. Eu pensei que os serviçais tinham que pelo menos terminar a
escolarização para servir. Não consegues entender um comando simples, a
diferença entre caro e barato, entre o que vale mais e o que vale menos, seu
analfabeto funcional. Traz logo um Marlboro” – contrariado em voz alta.
“Beleza, calma aí, chefe, pensei que o senhor
incentivava a indústria nacional” – rindo da provocação.
“Indústria nacional é o caralho. Vê logo o meu
Marlboro”
Cinco cervejas e um maço.
Esfriados os ânimos.
“Manere aí chefe, o senhor está sem amigos, o senhor
está sem mulher” – rindo novamente.
“Olha, filha da puta, o meu pau é o meu melhor
amigo. Foudam-se amigos e mulheres”
“Hahahahahaha... é isso mesmo, chefe” – rindo do
bêbado.
“Esses filhas-das-putas só querem fuder com a
paciência. Não se pode beber sozinho em paz nesta merda de cidade”
Dez cervejas e dois maços.
“Comandante, mande a conta, por favor”
“Tudo certo, chefe”
“Desculpe a grosseria da chegada, ando meio
impaciente esses tempos...”
“Sem problemas, chefe. Todos temos problemas.
Relaxe”.
“Obrigado pela paciência”
“Não a de quê”
Paga a conta.
“Chefe, o senhor não quer que eu chame um táxi ou o
seu amigo vai lhe ajudar a ir pra casa... hahahaha”
“Chame, por gentileza”
“Tá certo, chefe, o senhor é inteligente”
Chega o táxi.
“Só uma coisa Comandante: o meu pau não vai me
ajudar a ir pra casa porque ele vai me ajudar a fuder o cu da senhora sua mãe,
aquela vadia que te escarrou no mundo... filho-da-puta... hahahahaha”
“Ahhh... esse filho-da-puta quer morrer” – parte
para cima dele. É impedido pelo dono do bar.
“Rapaz, deixa ele em paz. Bêbado é assim mesmo, não
sabes? Ainda ficas provocando ele, bem feito pra ti... hahahaha... olha a mesa
ali querendo cerveja...”
“Beleza... mas um filho-da-puta desse merece uma
lição... a se merece... com mãe não se brinca...”
“Assumir-me na inteireza da minha miséria talvez
tenha sido o único ato de total sinceridade comigo mesmo. Ser sincero consigo
mesmo é o que realmente importa. No final, é o que importa”
Realmente, não se importava. Só duas coisas lhe
interessavam na mesma proporção irremediável que a água, o oxigênio e o
alimento que sustentavam sua matéria ignara: ler e escrever.
Funcionário público da Justiça Eleitoral, ele
desfrutava da vagabundagem remunerada – muito bem remunerada. Todo o seu tempo
livre era consumido em leitura e escrita. Na verdade, a vida ainda lhe segurava
fortemente com suas garras de sentido devido aos seus olhos engarrafados e as
mãos incrivelmente sadias. Só havia sentido no prazer da vista cansada depois
de ininterruptas horas de voluptuosa leitura.
Ler, para aquele homem, era estancar a dor, fazê-la
diminuir, assimilá-la, entendê-la, enfrentá-la como uma extensão do seu ser, ao
mesmo tempo, experimentá-la de maneira nova, sempre nova, sempre atualizada,
que jamais lhe abandonaria.
“Caralho, tenho um monte de coisa pra ler.
Dostoiévski, Joyce, Mann, Goethe, Melville, Graciliano Ramos, Drummond,
Guimarães Rosa. Ainda estou no meio do ‘Os irmãos karamazóvi’. Égua do livro.
Seguramente, é o melhor que li até agora. Até agora. Dostoiévski é aquele tipo
de literatura impraticável atualmente. Somente o gênio de um cristão ortodoxo
vivendo em uma sociedade completamente repressiva, com alguns anos de trabalhos
forçados nas costas, o vício do jogo na consciência, o peso de viver na
periferia do mundo, poderiam engendram linhas de grandiosa beleza, linhas de
sincero sofrimento, linhas de imponente esperança. Talvez, ele esteja certo.
Talvez, a beleza salve o mundo”
Só havia sentido pela escrita, produzida à mão, na
qual expurgava sentimentos no rasgar, no ferir, no desgastar da tinta sobre o
papel, aqueles ruídos lhe passavam a impressão de estar vivo: a sua respiração
voluntária.
“Hoje, acordei cansado. Dez horas da amanhã. Pensei
que fosse domingo. Era quarta. Não fui mais uma vez ao trabalho. É a terceira
vez esse mês. Desse jeito, acho que quero viver de luz, de fome, na rua, junto
a um exército de seres humanos invisíveis, que apenas existem socialmente em
função do cheiro que ferem as narinas da boa sociedade. Mais meia hora, levanto
definitivamente. Tomo banho. Água fria. Sinto-me vivo. O arrepiar da água fria
faz-me sentir vivo. Enxugo-me em alguma toalha velha, suja, jogada por cima dos
móveis. Visto uma roupa qualquer. Abro as janelas para entrar ar e luz naquela
caverna de escuridão, mofo e chão por varrer. Olho a porta, no chão,
correspondências. Contas de água, luz, telefone. Um aviso do senhoril: aluguel
atrasado por dois meses – quitar até o dia quinze. Hoje, dia quatorze do mês de
maio. Merda, vence amanhã. Não tenho um puto. Com fome. Geladeira, sem comida.
Água em abundância. Tomo um copo e sinto a água gelada lutar com a fome. Que merda
de vida fudida”
Para de escrever. Lê mais uma vez. Duas, três vezes.
Com a certeza, balança a cabeça negativamente. Faz mais uma bolinha e joga no
cesto de lixo com outras incontáveis bolinhas que transbordam do cesto.
“Puta que pariu. Só escrevo merda. Merda, merda,
merda. Essas trivialidades que não merecem o nome de Literatura.
Trivialidades...”
A caligrafia que emanava de suas mãos era digna de
inveja dos mais hábeis paleógrafos de outrora. Escrevia na caneta tinteiro
herdada do pai, com as letras ensinadas pela mãe.
A razão de sua dor estava na memória.
Nas lembranças que constantemente vinha lhe
afrontar, lhe questionar, lhe dilacerar as poucas forças do coração, as quais
serviam de matéria para o seu hesitante ofício de escrever.
Era como um trabalho que via o tempo gasto sobre a
mesa velha do seu quarto, abarrotada de livros e papéis rascunhados, notas,
correções, escrevinhando textos e mais textos consumidos por eventos da sua
memória. Nunca mostrara a ninguém os seus escritos.
Escrevia somente para si.
Não queria ouvir qualquer crítica, impressões,
opiniões sobre os seus textos. Sua vida, suas reminiscências, seu passado
estavam lavrados naqueles papéis.
“Escreve que a vida passa. Rapaz, escreve que a dor
passa”.
Suas dores não passavam.
A memória martelava firmemente, forjava forçadamente
uma imagem da vida pretérita nos tempos presentes, uma imagem que corroía a sua
senilidade, marteladas aliviadas pela pena no papel.
II
Vindo do interior, de um lugarejo longínquo no sertão
amazônico, no qual a vida move-se no entorno de atividades de subsistência,
agricultura, pescaria, extrativismo, da praça, da prefeitura, do porto, da vida
alheia, de povoar com robustas famílias o vazio demográfico destas paragens.
Cercanias nas quais o pátrio-poder é quem manda, é
quem molda, é quem ordena, justifica, avaliza, impõe o sentido da vida. Herança
direta dos tempos da Casa Grande. Resquícios das relações estamentais, manda
quem pode, obedece quem tem juízo, de suserania e vassalagem, do favor, do
apadrinhamento.
O Antigo Regime nos trópicos se perpetuava naquelas
parcas ruas sem alfalto, saneamento, sob o sol tórrido, no qual o homem ainda
submetia-se a duras lides com a natureza. Na igreja, nos comércios, na
prefeitura. Sobretudo, nas famílias.
Quinto filho de dez – cinco moças, cinco rapazes. O
pai era severo em demasia. A mãe cândida em excesso. Estudar era perda de tempo
– dizia o pai. Estudar era uma necessidade – pensava a mãe.
A despeito de sua vontade, todos receberam instrução
formal. Graças a sua insistência, nas suas recônditas estratégias de convencer
o marido, de manipula-lhe o amor, os filhos tiveram um futuro diferente do
destino posto.
Para ele, de acordo com as lições de berço, mulheres
eram preparadas para as bodas, os homens para a vida. Cultivar a terra, caçar,
pescar, extrair a subsistência da natureza eram coisas dignas de um homem. Da
vida de um homem. Cuidar da casa, dos filhos, do marido, ser prendada,
obediente, solícita, submissa, amorosa, paciente. As qualidades da mulher. A
posição mediana dentre os produtores rurais da cidade evitou submeter os filhos
à lavra da terra. E algunas pretensões à carreira política – sempre frustradas.
Entre os seus fora marcado pelas primeiras dores.
Tinha uma péssima relação com todos – exceto, a mãe.
Nenhum deles lhe suportara. Calado, quieto, introspectivo, consideravam-no um
esnobe por conta dos estudos bem sucedidos. Na verdade, reputavam lhe
execráveis qualidades.
Os irmãos odiavam-no por acreditar que ele tinha
atenção, afeição, carinho em demasia da mãe. O pai compartilhava do mesmo
julgamento. As relações pai e filho eram de igual conflito. Senão, pior. O
genitor irritava-se com as horas a fio que aquele menino gastava lendo,
estudando, debruçado sobre livros, papéis, jornais, revistas. Tudo aquilo era
intoleravelmente inútil. Arrependera-se amargamente do dia que deu ouvido a sua
mulher e permitiu tal inutilidade na vida de seus rebentos.
As irmãs detestavam-no por cogitarem que toda aquela
irritação do pai era cuidado excessivo, zelo excessivo, amor excessivo,
demonstrado, em alguma medida, de maneira rústica, vulgar, rude, por aquele
homem que era profundamente admirado, idolatrado, amado por suas filhas.
A mãe, com sua sensibilidade apurada, era cônscia de
todos estes pormenores de sua casa, sentia-se impotente diante do marido e dos
filhos, submetia-se a tirania da aliança e dos frutos de seu ventre, contudo,
invariavelmente, havia no seu coração uma particular afeição por aquele menino
sereno que se dedicava incansavelmente aos estudos.
Ele, por sua vez, viu-se obrigado a maturação
precoce, homem em corpo de menino, infância abortada, para suportar este
ambiente familiar hostil, a rejeição era ignorada com a força de sua neófita
inteligência, simplesmente negava com o ímpeto do seu coração infante qualquer
união com a massa amorfa de desconhecidos consanguíneos ao lado do leviatã
patriarcal que o havia plantando no jardim maternal.
III
Apenas o amor daquela mulher lhe importava.
A primeira frustração.
Engoliu a seco estas emoções impossíveis. Terríveis,
abomináveis, desprezíveis segundo a moral estabelecida. Os sentimentos são
terríveis, indelevelmente terríveis, seja para o bem seja para o mal, a sua
torrente nos faz tombar no mar bravio do deleite, nas ondas descontroladas do
coração, a revelia do nosso leme, ficamos completamente a deriva, sempre, a
deriva sempre.
Seus pensamentos diziam não. Seu coração dizia
hesitantemente sim. Depois que tomou conhecimento completo da situação, sua
vida nos domínios familiares fora de profundo conflito interior. Ele mesmo se
martirizava, se mortificava, se punia. Procurava nos estudos refúgio, alento,
escape. Na confissão, era o pecado inconfesso. Na reza, o primeiro pedido de
perdão. Não conseguia entender. Porque Deus criaria seres com tão pecaminosos
desejos.
Mas, não, sacrílego, não podia pensar desta forma,
herege, apóstata. Seguramente, Deus, do alto do seu trono de justiça, com todo
o seu poder, glória e majestade, não deixaria tal abominável desejo impune.
Deus lhe castigaria, cedo ou tarde. Sabia da punição, presente ou futura. A
maldição de Édipo lhe marcara os anos da inocência. Infância a deriva.
Um dia encontrou o norte, além da casa paterna.
Norte trágico.
Domingo ensolarado, manhã fresca, brisa suave, cedo
fora para a crisma. Sua vida marcava doze anos de existência. Mas naquele
domingo havia algo diferente. A mãe estava inquieta. Os irmãos calados com o
silêncio da satisfação. As irmãs mecanicamente disfarçavam alegria com as
amarras da dissimulação.
Ele conhecia o mover das peças de xadrez.
Havia recebido um xeque.
Meu filho, tenha paciência ao entrar no seu quarto –
com a voz pesarosa e serena, disse a mãe, sabendo que a situação era delicada.
Frio na barriga. Boca seca. Garganta embargada. Adentrara ao quarto. Espaçoso e
amplo, com cinco camas e três armários, o quadrilátero alojava confortavelmente
seus habitantes. Só havia uma mesa no quarto. A sua mesa. Totalmente
modificada. Arrumada. Sem sua permissão. Sem os jornais e as revistas.
Exclusivamente os livros permaneciam.
Catatônico, indignado, desrespeitado. Ele não
entendia os pretextos da rejeição, na maioria das vezes, ignorava-o, porém,
agora era diferente, porque até aquele momento era simbólico, com a
intervenção, tornou-se material, físico, real. Não emitiu uma palavra sobre o
evento, se tal dependesse de letras, palavras, frases para existir, nem seu
espectro tomaria figura. Soube depois pela mãe que os livros foram poupados
graças ao seu pedido. Jornais e revistas, não tiveram a mesma sorte, foram
sumariamente queimados, todos – versão oficial: evitar entulho, promover
higiene, manter a saúde. Uma benesse do
pai.
“Uma coisa fique bem clara, nesta casa, debaixo
deste teto, sob o meu sustento, sou eu quem manda, sou eu quem dou as ordens, a
minha palavra é lei. Eu não quero doutores na minha casa. Não quero
insolências. Não quero contestações. Eu estabeleço a ordem e quero sua
manutenção. Quero apenas bons e obedientes súditos. Eu sei o que é o melhor
para todos. Portanto, eu concebo a justiça, eu divulgo a justiça, eu aplico a
justiça. Sentencio e penalizo. Sem objeções. Quem está errado não tem direito a
defesa, restringe-se por seu erro, a receber a sentença e arcar com o castigo”
“Certo, senhor meu pai, a casa é sua, as regras são
suas. Mas não posso furtar-me de uma observação: se o meu erro foi dedicar-me
com afinco aos estudos, esforçando-me para honrar todos os investimentos
realizados no meu sustento e educação, só posso supor que a tua ordem pauta-se
no estabelecimento da ignorância e pela manutenção da ignorância”
“Garoto insolente, não me desafia. Não abuse da
minha paciência. Os próximos serem queimado vão ser estes teus livros inúteis.
Agora, vai procurar alguma coisa de útil pra fazer, além de estudar estas coisas
inúteis”
“Com sua licença, senhor meu pai”
“Some daqui antes que eu te dê uma sova”
“Homem, não achas que és muito duro com este menino,
ele é apenas esforçado nos estudos, o que há de mal nisso?”
“Mulher, maldito o dia que te dei ouvidos, eu não quero
doutores na minha casa, ninguém precisa questionar meus argumentos, minha
autoridade, minha soberania. Era pra ele está se dedicando na terra, cuidado
dos bichos, lavrando, semeando, cuidando da terra, como os demais irmãos dele.
Mas não, ele tá aí, enfiado nos livros. Desse jeito, vai até virar pederasta”
“Não fala uma coisa dessas homem de Deus. Isso é
maldição! Deus castiga! Eu sei que és homem bom e correto, não podias deixar de
dar oportunidade de estudo aos teus filhos, aquela que eu e tu não tivemos, com
todas as dificuldades, conseguimos tirar apenas o ginasial. Estás dando um
futuro melhor pra eles. Não seja tão cruel com ele, é apenas um rapazinho. Se
não quer incentivar, mas não critique. Não vai te custar nada”
“Tá bom, mulher. Deixa esse assunto pra lá. Que
assim seja”
Desforra – era idéia-fixa do menino.
Deu o prazo de duas semanas a si mesmo.
Formular um plano.
Aquilo não podia passar impune.
Uma semana passou. Já sabia o que fazer. Domingo.
Não foi a crisma. Ficara em casa estudando, consultando os livros, os jornais,
as revistas, novos que mãe lhe conseguira, escrevendo copiosamente.
Principalmente, escrevendo.
Utilizava a caneta tinteiro do patriarca.
Sagrada. Relíquia. Herança. Era uma das poucas
lembranças que ele carregava do avô. Ninguém tocava naquele objeto. A caneta
tinteiro, de quando em quando, era usada de maneira marginal, empregada em
atividades vulgares de assinaturas e notas esparsas, assumia o estatuto de
amuleto, ostentando quem lhe cerrava nos dedos a posição de um suposto letrado
que debilmente escrevia o nome.
Ele passara a amanhã toda na casa de um tio.
Regressara para o almoço. Fora chamar todos a mesa, como mandava o costume.
Entrou no quarto, avistou-o estudando. Irritou-se. Chegou mais perto. Viu pelas
costas o movimentar da mão levando a caneta ao tinteiro.
Cólera. Fúria. Ira. Abominação.
Na agitação rápida, ele apenas sentiu sua mão ser
agarrada, palma para cima, a caneta retirada abruptamente de seus dedos, de um
só ímpeto, cravada com toda a força, com o vigor de uma martelada,
ultrapassando a carne, os ossos, o sangue jorrou, no barulho seco da lâmina na
madeira. Olhar satisfeito do carrasco. A expressão dolorida do cordeiro
imolado. Meio-dia. Trevas. Cavou-se o fosso eterno. Expiação. Crucificação sem
salvação.
Seguiu-se o juízo.
Mil vezes amém.
IV
Dor. Vergonha. Foi o limite. Chaga na mão direita.
“Se antes eu apenas ignorava aquele homem estúpido,
vergado pelos anos da vida no campo, hoje eu restrinjo-me a nutrir um profundo
ódio. Se eu pudesse, não o mataria. Matá-lo seria igualar-me a sua estupidez.
Não, toda a aversão, todo o repúdio que sinto por aquele animal, que me rasga o
peito, deseja ardentemente que ele viva bastante, viva eternamente, porque cedo
ou tarde, ele pagará. A vida lhe cobrará amargamente. Apesar de querer fazer
alguma coisa a respeito, na hora, pelo menos, não tive reação, fico surpreso
comigo mesmo, pensando agora, mas foi muito rápido, e a dor me paralisou. Agora
somente ela me move”
Passado um mês, morava com um tio, parte materna, na
capital. Apenas a mãe sofreu. O pai julgara ter feito justiça. Os irmãos
ficaram com medo, as irmãs aterrorizadas. Ninguém falou nada. Um silêncio que
ensurdecia, um emudecimento que gritava no peito de todos. Não existiu. Aquele
domingo não existiu. O ato não existiu. O irmão jamais havia nascido. Sem
lembrança, sem saudade, sem referência.
A mãe não suportava. A atmosfera familiar tornou-se
intolerável. Contra sua vontade, os acontecimentos tomaram aquele desfecho. O
seu filho mais querido sofrera uma violência atroz, recebendo por recompensa o
desterro na casa de parentes. A mãe sentia a dor de um membro amputado. A
ausência de uma parte vital de seu corpo.
Chorava todos os dias. Todas as noites, as
lembranças do ato, do filho, da situação, daquela casa, do seu marido,
escorriam-lhe dolorosamente pelos olhos. Pedia forças, suplicava ao Criador.
Conversava com o padre, ele limitava-se a lhe dizer: deixa nas mãos de Deus.
Ela deixou.
Os filhos viam o seu definhamento físico, palidez,
olheiras, magreza extrema roubarem-lhe a beleza, usurpar-lhe a vida. Eram
indiferentes. O marido não falava nada, não precisava, recriminava aquele ato
de autoexpiação da mulher simplesmente ignorando-o. Ela deixou. Deus lhe
abandonara. Todos lhe abandonaram. Sozinha. Não sentia nada. Nem sede, nem
fome, nem sono. Nem a mais remota vontade de viver.
Seu coração mantinha-se pulsando, a respiração
funcionando por saber que seu filho querido estava vivo e bem. O sofrimento que
dilacerava o seu peito era a única coisa que a fazia sentir-se viva. A dor lhe
fazia sobreviver. Ela deixou. O fardo era pesado em demasia.
O trinta e oito do marido. Cabeça. Cano frio sobre o
cabelo. Muito medo. Dedo, gatilho. Barulho seco. Leveza. Paz. Muita paz.
“Desculpem-me querido marido e filhos. Eu não
suportei. O fardo é muito pesado. A indiferença de vocês me matou. Aquele
garoto que vocês detestavam era o motivo da vida ser minimamente feliz, ele
retinha todo o meu amor. Retiro-me desta vida com a amargura de quem foi fraca,
de quem desistiu sem lutar, e quer ver suas consciências definharem no mais
sórdido remorso. Mais uma vez eu digo: vocês, unicamente vocês, são
responsáveis pela minha morte. Adeus”
Um papel dobrado, escrito à mão, sob o
porta-retratos com a foto do casamento.
A tragédia fincou morada definitiva naquela casa.
V
Os primeiros meses de adaptação foram difíceis.
O tio era severo, mas amável. Alto, magro, barba,
calvo. Era advogado. Iniciando na carreira, futuro promissor. Sua mulher tratava-lhe
tal qual um filho. Mesma altura, ligeiramente acima do peso, cabelo curto,
jovem, bonita. Era contadora. Trabalhava no escritório do pai, gostava da
profissão, muito esforçada – tão somente.
Não tinham filhos. Uma das grandes frustrações do casal.
Este evento crucial que impedia se constituírem em família: um filho, um
herdeiro, um rebento. Por isso acolhida foi imediata, de maneira receptiva e
alegre, apesar da ocasião. O casal atravessa uma crise: a impossibilidade de
ser família.
Os dois acusavam-se, bate-boca, discussões
intermináveis, arrependimentos, mas sabiam que a culpa não era de ninguém,
nesta história, não havia culpados, apenas vítimas e resignação. Apesar de
tudo, amavam-se perdidamente.
Souberam da situação do menino. Ele quis intervir,
processar aquele monstro, maus tratos a incapaz, menor de idade, com exame de
corpo e delito, o testemunho do garoto, ganharia a causa, com toda a certeza. À
custa de tempo e exposição da família – o ônus da causa. A irmã lhe implorou
para que nada fizesse. No primeiro contato dela, ele não hesitou em
ajudar.
Transformar o sobrinho em filho foi o único pedido.
Contrariedades, senões, dificuldades postas, ele aceitou a delegação.
Consultara sua mulher antes de tomar qualquer decisão. Ela assentiu
imediatamente. Queria ser mãe, malgrado sua biologia, malgrado as
circunstâncias. Não importava, o chamado de ser mãe, inerente a condição
feminina, era incomensuravelmente mais forte.
O menino não dava trabalho. Sua presença
restabeleceu o clima amistoso, a paz, a serenidade ao lar. Às vezes, sentia-se
por sua falta. Trancado no quarto, sua caverna era abandonada em cotidianas
ações: banheiro, refeições, escola. Sem barulho, bagunça, alvoroço. Não pedia
nada, sem birra, sem más criações. Solicitava, quando estritamente necessário,
algum dinheiro para comprar livros, revistas, jornais, com certa regularidade,
e mais esparsamente, para tinta e papéis.
Os tios estranharam. Levaram-no em analistas, aquele
isolamento não era normal, porém suas suspeitas foram inócuas, sem qualquer
distúrbio ou problema psíquico diagnosticado, respeitaram a forma de ser do
menino. Segundo os especialistas, ele sofreria de precocidade, de uma admirável
precocidade. Talvez sua progressiva inserção na escola fizesse ter amizades,
evitando tal isolamento.
A escola lhe instruiu amarguras novas. Na casa do
tio, terminou as séries da educação básica – primeiro e segundo grau, instrução
iniciada ainda sob o jugo da casa paterna. Para o vestibular, medicina. Doutor
– irritar o pai. Entretanto, não obteve êxito, a excessiva concorrência e a sua
pouca habilidade nas matérias de cálculo renderam-lhe notas máximas nas
disciplinas de humanidades e na redação.
Almejava a medicina para ajudar efetivamente uma das
áreas mais precárias de sua terra. O fato capital para tal escolha foi
presenciar a morte de um tio paterno. Acometido por um infarto, morreu como um
cachorro por falta de atendimento. Nunca tinha visto a morte de perto, mesmo
que fosse de um parente distante.
No velório, diante das pompas, dos prantos, das
rezas, ficou olhando fixamente para o rosto plácido do morto. Naquele instante
teve a consciência total da finitude da vida – dolorida constatação. No
entanto, depois de pensar melhor no assunto, percebeu o consolo que é saber que
tudo tem um fim – a finitude tornou-se algo confortável.
Dois meses de exílio, chegou uma carta: a morte da
mãe era a notícia. Escrita por uma de suas irmãs, as linhas lacônicas deixavam
claras a dor da perda e transcrevia mortiferamente as derradeiras palavras
maternas. Ela o amava.
Quase ficou louco. A camisa de força não lhe prendeu
porque as raízes da razão eram mais profundas e fortes, elas resgataram sua
sanidade, pondo-a de pé, passo a passo, alguns descompassos, porém manteve o
passo firme. Sobretudo, em resistir a cicuta do suicídio. Passou dias, passou
semanas, arquitetando seriamente dar cabo da vida. Não conseguiu por dois
simples motivos: covardia e vontade de viver.
Ultrapassado o luto, fechou-se em si. Estudou
avidamente, esmerou-se nos cálculos, na exatidão da vida consignada pelas
ciências naturais. Aprovado em Direito – influência do tio. Mais um bacharel,
mais um doutor, mais um advogado – o exame da ordem foi de tabela. Foram cinco
anos de estudos inúteis para a sua formação humana. Na verdade, constatou que o
mundo universitário está preocupado com qualquer outra coisa, exceto a formação
humana.
Aprendeu valiosas lições no Direito. Primeiro, a
maneira de legitimar juridicamente com prescrições, parágrafos, incisos,
códigos hipócritas uma ordem social profundamente desigual, perversa,
abominável. Segunda, utiliza-se do cinismo, da retórica e da consciência
vendida como instrumento de trabalho. Terceiro, antes de findar o curso: já
sabia a que tipo de pessoa odiar, o que não queria ser e não estudar. Terminou
o curso querendo fazer Física. Depois da faculdade, foi morar só. Depressivo
pelo tempo perdido, ainda pegava alguns casos, advogava para pagar as contas,
no tempo livre estudava para concurso. Fechou-se definitivamente em si.
Recebeu uma carta. Notícia: estava órfão.
O pai fora assassinado devido disputas políticas.
Ficou triste.
“Nunca tive tendência gregária na vida. Talvez seja
herança do berço. Inadaptado a qualquer outra vontade humana que não fosse a
minha. Ao largo de qualquer agrupamento humano que me impusesse comportamentos
contrários as minhas crenças pessoais. A honestidade em cumpri-las sempre foi
um das minhas posturas mais inflexíveis. Nunca relativizei minhas idéias –
claro que nunca me faltou bom senso, operei no limite do bom senso. Não
acredito que isso seja egoísmo, individualismo. Em alguma medida, isso seja
tributário a remotos instintos de autoproteção de quem se restringia a afiar as
garras secretamente na crença de dias melhores em razão de sobreviver entre
feras, recusando-se peremptoriamente a compartilhar da mesma condição de fera.
Sou humano e mantive-me humano. Vivendo entre animais, mantive a dignidade de
ser humano. Não sei se por sorte ou azar, porém mantive. Julgamentos deste tipo
não me valem muito agora – nunca valem. Não tardou, por essas circunstâncias e
tais posturas, sobretudo no período de desterro, abandonar a igreja, lugar cuja
exigência de demasiada fé e parca dúvida não necessitava da minha presença. A
mesma coisa com o partido – obediência cega ao programa, alegações de
centralismo democrático, não resistiram a minha crítica detida dos fatos
cotidianos, todavia mantive as minhas inclinações políticas para o lado canhoto
do poder. Na verdade, sinceramente, sempre me senti como um átomo
incomunicável, isolado, aleatório. Um átomo desintegrado das moléculas sociais
de sustentação da dura matéria da boiada humana”
Contudo, este homem não ficou alheio às paixões,
ninguém fica impune. Ainda nos tempos de faculdade, apaixonou-se perdidamente.
Comprometida, discreta, inteligente, encantadora. Era um dos raros casos de
pessoas que conseguiam ir além do óbvio naquele curso de bem nascidos.
Calculava as oportunidades de conversa, trocava algumas palavras com razoável
frequência, o mínimo para ser notado. Certa vez, ela veio, espontaneamente,
tirar uma dúvida de direito penal, conversaram bastante, ela tirou a dúvida, e
percebeu o notório interesse. Não estava bem com o namorado, precisando de
ajuda em constitucional.
“Vais estar ocupado no fim de semana?”
“Não, não. Por quê?”
“É que estou precisando estudar constitucional,
estou vendo que vou reprovar nesta matéria. Poderias me ajudar?”
“Claro que sim. Não sou tão bom em constitucional,
mas acho que posso ajudar”
“Não seja modesto, és o melhor aluno da sala”
“Sou apenas esforçado”
“Ainda bem que existem pessoas modestas. Raros
exemplares... hahahahaha... Então, que tal sábado a tarde?”
“Pra mim, tá ótimo”
“Toma, tá aqui o endereço do meu prédio. Não vai
atrasar. Deixa eu ir. Beijos”
“Tá bom. Tchau”
Os pais não estavam. Viajaram o final de semana.
Estudaram com afinco. Ela tomou a iniciativa. Despertava uma excitação tão
forte nela por conta da sua descrição e Inteligência – garantia da impunidade.
Ele deixou-se levar pela paixão. Transaram tudo o que fosse possível. Foi
embora no domingo à noite.
Na semana, tudo normal. Nada aconteceu. Ele ficou
angustiado por gostar de alguém tão filho da puta. Porém engoliu seco. Tratou-a
normalmente. Ela sabia disso. Apenas as lembranças vinham e torturavam. Ela,
sempre com as mesmas conversas de tirar dúvida. Olhar provocante, ela
serpenteava seu o corpo farto em carnes, sabia manipular ardilosamente seus
encantos. Uma adorável vadia. Nunca mais aconteceu.
Esqueceu a duras penas. Depois de muitas festas,
porres e outras fodas. Bêbado ficava razoavelmente sociável, agradável,
comestível. Aquelas condições atendiam suas necessidades básicas: afogar as
mágoas no álcool e afogar o corpo na volúpia. Depois dos porres homéricos, as
ressacas trágicas. Levou a vida assim por um tempo, até fechar-se novamente.
Focar, prioridade: passar num concurso.
Passou. Tribunal Regional Eleitoral. Seis horas de
trabalho diário. Não fazia rigorosamente nada. Aparecia algum volume de
trabalho, algo totalmente tolerável, nos períodos de eleição, quando tinha que
emitir título eleitoral e toda a burocracia das eleições: inscrições de
quadrilhas sob a legenda de partidos políticos. Anos, anos e anos nesta
estagnação.
Recentemente, apaixonara-se. Na verdade, nestes últimos
tempos, começou a sentir sensações diferentes, a qual lhe causava extremo
pesar, amargura, vergonha. Lutava, resistia, combatia. No entanto, eram mais
fortes. Velho, conservando alguma robustez, ficava de pau duro vendo os rapazes
da repartição. Criara extrema afeição por um deles. Devia ter uns vinte e dois
anos. Forte, alto, atlético. Nunca se atreveu a qualquer abordagem. Doía-lhe
sentir aquilo, doía ainda mais reprimir. Mais uma paixão frustrada.
Começou a frequentar bares, saunas, clubes. Descobriu
um mundo novo, um universo em expansão, no qual diversas pessoas conhecidas lhe
davam boas-vindas com olhares imponentes. Demorou muito para se acostumar com
aquele ambiente. Demorou mais ainda para se relacionar com as pessoas.
Acostumou-se, aceitou-se, os desejos afloraram. Depois de um mês, estava
chupando, sendo chupado, dando e comendo cu, indiscriminadamente, com múltiplos
parceiros, verdadeiros banquetes, festivais bacantes. Passados os ímpetos
iniciais, sentiu falta de peitos, cu e buceta. Satisfeito completamente,
começou a frequenta periodicamente os ambientes. Até que se tornou raro.
Fechou-se novamente.
Pela derradeira vez. Sentiu um cansaço repentino,
algumas dores no peito, náuseas, dores de cabeça. Foi ao médico – detestava
médicos. Fez uma bateria de exames, um check-up total. Uma semana depois voltou
com o resultado dos exames.
“Então, o que dizem os exames?”
“Meu caro, os sintomas que vens sentido é devido
algumas doenças detectadas, dentre elas, uma é grave”
“Qual? Diga logo? Eu sabia... É câncer? “
“Não. Diabetes, gastrite, quase ulcerando, cirrose
em estágio mediano”
“E qual delas é a mais grave?”
“Eu não disse ainda”
“É o câncer né?”
“O senhor é Soro positivo”
Silêncio.
Olhar de Pânico. Terror. Pavor.
“Obrigado, médico, pela sentença”
“Não perca a esperança, hoje há uma expectativa de
vida longeva com qualidade. Vou lhe prescrever os remédios, o coquetel e o
tratamento necessário, seu quadro nesse momento é delicado, são várias doenças
em um sistema imunológico fragilizado, mas com o tratamento feito, estes
sintomas desaparecem, e é possível viver com qualidade”
“Caralho, porra, eu já disse obrigado”
“A tua sorte é que não tens esperança, vais
apodrecer rapidamente. Velho fudido”
VI
Um tiro de trinta e oito na cabeça.
O corpo jaz sobre a cama. Uma poça de sangue.
Um papel dobrado sob o porta-retratos com a foto da
mãe.
Em cima de sua mesa de trabalho.
Ao lado, uma pilha de papéis, escrito na folha de
rosto:
“Memórias de uma vida no exílio”
“Quem ler este papel, por gentileza, realize os
desejos de um morto. Joguem minhas cinzas perto do túmulo da minha mãe. Vendam
este apartamento e deem o dinheiro ao meu tio. Se o meu livro for publicado e
vender alguma coisa, o dinheiro vai pra ele também. Ele saberá o que fazer com
o montante. Caso não seja, destine-o a crítica roedora dos ratos”.