segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

“É isso mesmo”



Um filete de cachaça encharca o chão. Faz um caminho molhado em direção a sarjeta. Entornado de uma garrafa que repousa nos braços infectos de um mendigo. “Mais um vadio, esses filhosdaputa ficam parasitando a cidade” – ele pensou, na sua indiferença atávica, andando apressadamente a caminho do trabalho. Estava atrasado – como sempre. Trânsito caótico. Sete horas da amanhã. Antes de sair de casa, tomou um banho rápido, vestiu a camisa e a calça amarrotada, o sapato sujo, o cabelo sem pentear e um gole de café preto. Chegava ao trabalho às oitos horas. Em ponto. Todo dia a mesma coisa. A mesma coisa todo mês. A mesma vida há trinta anos. No ônibus, sempre lia o jornal.

“Crise na Europa afeta as bolsas e ameaça atingir os países emergentes”

“Corte de quarenta bilhões de reais do orçamento público para manter a estabilidade econômica e austeridade fiscal. Aumenta-se os juros. Controla-se a inflação”

“Exportação brasileira diminui devido crise na Europa e nos Estados Unidos. Agronegócio e o terceiro setor calculam prejuízos

“Professores entram em greve por tempo indeterminado. Trinta mil alunos ficam prejudicados às vésperas do vestibular”

“Policiais militares, civis e bombeiros ameaçam entrar em greve por melhores salários e plano de carreira”

“Leão fica mais uma vez sem divisão”

“Seis jovens são chacinados em Icoaraci”

“O Remo sempre fazendo vergonha. Esse bando de vagabundos que ficam fazendo greve para não trabalhar. Um bando de vadios. Esse país não tem jeito mesmo. Quem quer trabalhar não tem emprego e quem não quer trabalhar, tem. Devia ser um bando de maconheiros devendo para traficante. O governo tem que apertar o cinto mesmo. Eu quero é que a Europa se dane, bando de almofadinhas escrotos” – pensava ele ao ler superficialmente aquelas notícias.

Oito horas. Chegou ao trabalho. Uma empresa de serigrafia. Estava se arrumando para mais um dia de trabalho. Colocando o avental e a máscara. Fazia o acabamento dos banners. Foi chamado pelo gerente ao escritório. Era seu amigo, com quem tinha intimidades e quem lhe conseguiu o emprego na loja.

“Bom dia, Alves”

“Bom dia, Osvaldo”

“Queres falar comigo, a essa hora da amanhã? Cadê as vadias?”

“Não, Osvaldo. É um assunto sério”

“Sério? Agora me deu medo. Diga” – e sentaram-se os dois.

“Rapaz, é o seguinte: estamos vivendo um momento difícil no país e no mundo, de crise financeira, e isso afetou nas vendas da loja, e estamos tendo que cortar gastos e economizar”

“Deixa desse papo furado. Vá direto ao assunto”

“Certo. Eu tenho duas opções para você”

“Quais?”

“O corte do seu salário pela metade. Ou a demissão”

“Isso é praticamente a demissão, o meu salário já é pouco”

“Você escolhe. Vou conversar com todos os funcionários da loja hoje. A mesma conversa”

“Égua, Alves. Tenho família para sustentar. O meu salário já tava no limite. Não tens como me dar essa força?”

“Desculpe, Osvaldo. Mas é isso. É pegar ou largar”

“É isso mesmo?”

“É isso mesmo”

“Tá bom”

“Estamos conversados?”

“É isso mesmo” – disse ironicamente.

Saiu da sala. Voltou ao trabalho com uma idéia-fixa: como ia dizer isso em casa.

“Preciso de uma cerveja” – pensou.

(Felipov)