terça-feira, 29 de maio de 2012

Sobre tigres e abismos (*)






Era um tigre já velho, cercado de tigresas e dono, por seus próprios dentes e garras, de uma savana inteira que se estendia por todos os horizontes, num desses lugares da África onde o tempo passa, indômito, em ventos à oeste, à leste, ocasos rubros e cheiro de vida.

Deitado numa rústica e confortável cama de ramos secos, ele passava seus dias contemplando com qualquer sentimento indiferente seus domínios do alto de uma pequena elevação na planície amarelada. Entre as refeições, caçadas e servidas pelas fêmeas, ele dividia sua vida de emir em frações de coitos e passeios, não muito longos, pelas imediações. Caminhava por seu reino para se convencer de que ainda estavam lá as coisas que deixara quando ia se deitar. E assim os anos foram embora.

Um dia apareceu outro tigre. Não era nenhuma novidade que aparecessem outros tigres: assim o velho forjara seu pedaço de mundo: hostilizando, trucidando e entregando outros, fortes e fracos, aos abutres e hienas. Deles havia um monte de ossos, brancos, no canto onde as carniças eram abandonadas, quando já não havia nada que aproveitar, fosse pelos bichos, fosse pelos vermes. Os restos ficavam lá, sem que ninguém os fosse recolher, porque não há isso entre os tigres, a necessidade enterrá-los – para os tigres, ossos são ossos. A África parecia não se importar também.

O tigre veio caminhando, francamente anunciado pelo seu andar pesado, pata a pata a pata a pata, sem pressa, sob os olhares apreensivos das tigresas e a indiferença do velho, que não sabia se cochilava ou se abria um sorriso de todos os seus dentes rasgadores de carne. Num relance, seus olhos viram dezenas de ocasiões como aquelas, das quais sempre saiu vencedor, e agora estava aqui, dono de tudo. Despreocupado, porém alerta, acompanhou a caminhada do outro, enquanto um gigante soprava, fazendo com que a relva remexesse, como os cabelos loiros de uma albanesa. O tigre se aproximava.


Até que se colocou em frente ao velho.


- Que bons ventos o trazem? - perguntou o tigre, deitado em sua paz.

- Nem bons nem ventos. Venho para ficar com tudo que tens – disse, sério, o outro.

- Estás vendo aquela bagunça, alva como marfim, ali? - interrogou, sorrindo, o velho e apontou com sua pata pesada os ossos.

- Vejo.

- Então tens bons olhos – gracejou o velho, e todas as tigresas riram, tensas, em miados selvagens.

O tigre que chegara não se fez prosternou, no entanto: permaneceu lá, rígido, com um semblante calmo, transbordando de certeza. A África sussurrava seus segredos nos ouvidos dos bichos, que os entendiam, todos. O vento parara.

- E medo, tens? - quis saber o velho.

- O senhor bem sabe que aos tigres não é permitido o medo – sentenciou.

- Se cheguei até aqui é porque nunca o tive, mas sempre o cultivei próximo a mim. Fosse nos que me cercavam, fosse no sangue que provava, sempre tive o medo em algum lugar ao alcance da vista, para não me esquecer de como era.

- Falas muito, velho.

- Vi e vivi e matei muito mais, rapaz.

- E vais chegar ao fim, como tudo.

O velho tigre levantou-se e sacudiu-se, para que a preguiça saísse de seu grande corpo. Entre as tigresas houve um pequeno murmúrio, que logo foi abafado. Um elefante soprou seu saxofone num extremo da savana. O velho então olhou para cima, para o céu, o mesmo céu, incandescente teto azul, dourado num ponto. Baixou a cabeça. Se era preciso, que fosse feito.

- Rapaz – e isto disse o velho tigre com os olhos injetados nos do outro – vou te fazer uma pequena concessão: vamos conversar.

- Sabes bem o costume, velho. Não podes fugir ao teu destino. Somos nós dois aqui na savana, e só um de nós ficará de pé – retorquiu o outro tigre.

- Sei disto, rapaz, mas não te apresses, que o mar é muito para poucos dias. De onde vens?

- Venho do vale, depois dos precipícios.

- Vens de onde nasce o rio que os que andam em pé chamam de Nilo, então – disse, animado, o velho tigre, que ouvira falar do famoso rio.

- Sim – confirmou o tigre, o semblante levemente comprimido de ansiedade. Era um tigre, bem novo, com os olhos vivos de quem andara por vários chãos.

- E como é a tua terra? - interessou-se o velho.

- É cheia de chuva e tem todos os cheiros e no rio os barcos aportam num cais onde há um mercado de peixe. - o tigre pensou um pouco mais e se esforçou para recompor um quadro distante - É cheia de florestas.

O velho tigre achou graça, no que foi seguido pelas tigresas, que permaneciam tensas, esperando o próximo ato. Havia nascido na savana, e nunca havia saído dela. Aprendera cedo a ser o tigre que era, e a reinar. O sol esquentava tudo.

- E como chegastes aqui?

- Caminhei. Subi serras e atravessei os sertões. - o tigre já estava impaciente. - Já passa do tempo, velho.

- Calma, rapaz – disse o velho tigre, olhando para longe - Engraçado este nome, Nilo. Para os tigres nada tem nome, nem o Nilo, nem eu, nem tu, nem estas fêmeas aqui, ou estes campos, ou os sons que nele nascem e morrem. Não há necessidade de dar nome ao mundo quando vivemos, matamos e morremos nele, quando somos parte dele e não queremos que ele se curve a nós. Pobres diabos são esses que perdem suas vidas com palavras e guerras e ferramentas, e esquecem dos horizontes.

- As verdades dos homens, velho, não são as mesmas dos tigres. Também nós resolvemos com sangue nossas vidas.

- É isto que queres resolver? Usurpar meu reino? Um monte de terras, caça farta, todas as tigresas em que puderes montar? É isto que te traz até aqui, longe da tua terra, do ar das florestas, dos lagos, de tudo?

- Não, velho, não quero discutir meus motivos. Tudo que é teu será ainda hoje meu. É a sorte de todo tigre e de todo reino, esta é a regra da vida. Eu vou te suceder até que me venham matar, e assim o mundo corre.

O velho tigre então baixou a cabeça e viu a África sob suas patas. Não há mais futuro nas borras de café do que no chão seco e pedregoso de uma savana. Respirou, e o ar lhe refrescou o corpo por dentro. Olhou o outro e disse:

- Vieste do vale. E tinhas o mundo, rapaz.



*

Bicos disputam pedaços de carne cada vez mais escassos, e há moscas zumbindo em toda parte. As tigresas assistem ao epílogo de longe, umas deitadas, outras sentadas. O vento agora sopra novamente, quase leve, pois o gigante está cansado e a albanesa, de cabelos um tanto presos. Saxofones do outro lado, um tiro de espingarda. Uma cabeça felina, arrancada do pescoço a dentadas, jaz num canto, sobre o mato ralo, intocada pelos bichos. Talvez as hienas e os chacais briguem por ela quando a noite chegar, fria, a este lugar.

Um velho tigre caminha a passos arrastados na direção oposta do seu recanto. Está cansado e cheio de machucados, arranhões e marcas de dentes, vestígios mortais de um violento e recente embate. A carne rasgada não o incomoda, no entanto. Tosse e escarra sangue na relva que cobre a savana, e sabe que este passeio será só de ida, o último por um reino que é cada vez menos seu. No gosto metálico que paira em sua língua sente falta de algo e sorri, combalido pelos ferimentos. Nunca tomou este caminho, mas o conhece bem, de vista, do alto de seu conforto, e após muito caminhar a savana finalmente acaba e só há um imenso abismo de bordas pedregosas, onde ele se encosta para descansar. Está exausto.

Abaixo, há uma grande planície seca. Além dela, numa montanha que o tigre enxerga, azul, um rio nasce sem pedir permissão a ninguém. Como os bravos.


(Igor Farias)

(*) Mais um texto deste puto que insiste em ser colaborador deste blog. Obrigado, rapaz.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Não!



“Há muitos modos de afirmar; há um só de negar tudo”
(Machado de Assis)



Eu vos direi no entanto:
Enquanto houver espaço,
 corpo e tempo e
 algum modo de dizer não
Eu canto

(Belchior)


Não!

Sem paciência. 

Sem moderação. 

Sem aquiescência.

A vida exige mais pessoas sem paciência. Mais pessoas corajosas. Mais pessoas indignadas. Mais pessoas destemidas. Mais pessoas que não tem o que perder. Mais pessoas que não tem medo. Há na vida muitas exigências, muitas cobranças, muitas necessidades, muitas urgências. Exigências que são razoavelmente atendidas, parcamente satisfeitas, debilmente realizadas.

Não há o que esperar.

Ação, movimento, agitação. Abolição do cruzar de braços. Emancipação do baixar cabeça. Destruição da docilidade. Palavras mansas, vozes calmas, grilhões fortes. É necessário gritar, vociferar, uivar. É necessário discutir, debater, subverter, controverter. É necessário xingar, ofender, insultar, ultrajar, afrontar a plenos pulmões.

Esperar é para os fracos.

A força dos fortes baseia-se na contemplação dos fracos. O fraco em si não é fraco, sua fraqueza se deve a sua espera, a sua calma, a sua bondade, a sua caridade, em suma, a sua submissão. Os fortes apenas dominam. A sua dominação é simples. A sua dominação é fazer com que o fraco não se perceba forte. É o fraco ver-se sozinho.

A vida exige luta, solidariedade, confronto, compaixão, combate, honestidade, integridade, violência, justiça. O soco na cara é mais eloquente, persuasivo, esclarecedor em comparação aos mais bem construídos e pomposos argumentos. O punho cerrado diz mais, faz mais, muda mais. O soco no estômago é o melhor dos argumentos.

Não!

É o tempo da negação. É tempo de cobrança. É tempo de reparação. É a vez dos fracos. É a vez dos vencidos. É a vez de daqueles que nunca tiveram vez.

Aqueles que constroem o mundo, braços fatigados, costas desgastadas, mãos calejadas, pés corroídos, pulmões estafados, corações atormentados pela esperança de dias de melhor sorte, mentes cansadas, letárgicas de tantas rezas, promessas, promissões adiadas, esquecidas, mentiras que se perpetuam, aqueles que carregam o fardo histórico, séculos, séculos e mais séculos de fardo colonial, imperial, republicano, ditatorial e democrático, o legado da derrota, a herança de extinguir suas existências na expiação diária, do tempo expropriado, do sangue entornado, do suor acerbo, da civilização, do progresso, da tecnologia, a era da informação, a cibercultura, tem sob os seus pés calçados da mais fina soberba a vida ininterrupta de homens, mulheres, crianças e idosos que foram triturados nas engrenagens que sustentam as benesses da sociedade do consumo, as cavernas refrigeradas com suas galerias de lojas, cinemas, cafés, fast foods, delivery, fitness, business são possíveis em razão de sequência de dias, anos, décadas, séculos do não silenciado a duros golpes do sim benevolente.

A sociedade de classe, a mão invisível do mercado, o modo de vida ocidental, a cultura judaico-cristã, as nossas vidas americanizadas, a nossa maneira de comer, de beber, de cagar, de amar precisam ser radicalmente negadas, apenas a negação de nós mesmos é que conseguiremos construir uma ordem das coisas na qual dizer não seja somente uma possibilidade e ao invés de um imperativo inadiável.

O sangue africano cobra! O sofrimento, o saque, o genocídio ameríndio cobra! Os quilombos gritam! Os malês gritam! Os cabanos gritam! Os zapatistas gritam! Os cubanos gritam! As periferias do mundo todo gritam!

Basta!

Não, de maneira única, eu canto!