sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Amor



Ele, aquele adorável monstro, de barba cortante e hálito de tabaco, exercia sobre mim um magnetismo brutal, hipnotizava-me com aquele seu olhar de cachorro no cio, dissimulado, abusado e sensual, imperativo em seus desejos e queres, bastava-me o papel de brinquedo bem cuidado em suas calosas mãos, esmagava o meu corpo débil, alvo semelhante a neve, cheio de sardas que ele dizia serem manchas de canela, de tons rosados em suas extremidades, quase amorfo pela sua inefável maciez, firme do pleno zênite que a puberdade completa possibilita, sempre que sentia seu cheiro, a sua presença, ficava inebriada em minhas carnes, languidamente esperando a sua virilidade dominadora tomar posse natural em meu corpo. Eu sentia dor e prazer ao mesmo tempo. Ele é maior e mais forte do que eu. Mais velho, mais experiente. Um homem. Um animal.
Ele conhecia naturalmente todos os atalhos do meu sôfrego corpo. Sabia desempenhar a sua deliciosa violência em atos sucessivos e deleitosos nos quais me sentia plenamente mulher. Tinha dezoito anos neste tempo da minha remota existência. Ele, por sua vez, era três décadas mais velho. Não conversávamos muito, trocávamos algumas lacônicas palavras, sempre o necessário para haver o mínimo de comunicação. Ele trabalhava em minha casa como faz-tudo.
Trabalhador, dedicado a atividades manuais, de corpo definido, mãos fortes, estatura mediana, com uma ligeira barriga de cerveja, uma barba mal feita, ele tinha um porte de nobre, sempre bem penteado, exalava um perfume profundamente agradável. Ele adorava o meu cheiro de canela. Eu amei este homem. Amei-o naquela parte da vida na qual ainda não nos é legada o benefício do cinismo. Amei-o avassaladoramente. Beirando as raias da loucura. Tomei conhecimento do amor no contato com o seu corpo rústico.
A primeira vez que o vi em ação foi quando ele trepava com a minha mãe na lavanderia. O impacto foi imediato, similar a um soco no estômago. Fiquei sem ar com aquela cena terrificante. Sem ar pelo espanto, uma vez ultrapassado o assombro, eu fixei o olhar com a atenção no ato. A excitação foi inevitável. Ele fodia-a vigorosamente. Minha mãe sentava no seu pau engolindo-o com sua buceta gulosa, sua bunda subia e descia, formosa e tremulante, naquele pau gigante. Arfafava abafadamente de prazer. Era muito angustiante ver aquilo, e, ao mesmo tempo, fiquei toda molhada. Deleite-me ternamente sob o movimentar de meus dedos. Desejava aquela pica em mim. Queria sentir aquele pau deflorar-me.
Depois daquele dia, olhava-o de forma provocante, insinuava-me, atraia-lhe atenção, o meu corpo de ninfa chamava-o. Ele observava, sentia a chama do desejo arder nos gestos hesitantes, abrasando as suas carnes, enrijecendo-as, mas ignorava-me deliberadamente. Sua indiferença me feria. Eu não agüentava mais, ele tinha que me foder. Pairava sobre nós uma atmosfera de volúpia, de um brutal querer, uma vontade ensandecida de um se apoderar do corpo do outro, de beijá-los, mordê-los, chupá-los, tapas, línguas, buceta, pica, cu e seios em uma movimentação onírica em nossas fantasias inconfessáveis, que apenas os olhos, os malditos espelhos da alma, denunciavam, porque deles transbordavam essa lascívia bestial.
Alguém tinha que tomar a iniciativa. Tomei-a. Não agüentava mais. Inventei que o ar-condicionado o meu quarto estava quebrado. Faltei a aula. Não tinha ninguém em casa. Só eu e ele. Era o ambiente impune que precisava para o meu crime perfeito. Estava de vestido, sem calcinha. Ele entrou no quarto. Estava usando o computador em cima da cama. Olhei-o com indiferença e apontei para o ar-condicionado. Com aquele ar grave e taciturno próprio dos homens maduros, ele andou para o lado de minha casa, onde ficava o aparelho.
Projetou os braços para cima, tirando a tampa, ficando momentaneamente indefeso, eu encostei-me na sua costa, pressionando meus seios, com as duas mãos, peguei no seu pau. Assustou-se imediatamente, ficando de pau duro. Virou e disse: “O que queres, sua fedelha mimada? Fuder? Não agüentas meio hora de pica comigo sua filha-da-puta! Bora, solta o meu pau”. Eu apenas disse: “Vem, seu velho escroto de merda, pau mole da porra, vem mostrar do que és capaz!”.
Ficou de frente para mim, face a face. Aquele hálito doce de tabaco. Beijou-me com tanta devassidão que fiquei totalmente molhada, um pouco atordoada, quase sem ar. Eu apenas enfiava as minhas unhas em seu cabelo, braços e costas, semelhante a navalhas cingidas pelo desejo. Ele rasgou o meu vestido com apenas um movimento. Gostei disso. De uma vez, inclinou-me para frente, enfiou dois dedos na minha buceta, entrando sem qualquer resistência. Retirou os dedos e chupo-os, e disse: “Tens um gosto delicioso”.
De súbito, enfiou aquela pica grande e grossa em minha buceta infante. Foi doloridamente gostoso. Puxava o meu cabelo. Puxava. Puxava. Penetrava. Penetrava. Penetrava. Penetrava. Deflorando-me deleitosamente. Com a violência necessária para me fazer gritar. Delirar. Delírio: suava de delírio. Tapas na minha bunda. Tapas. Tapas. Tapas. Percebi que ele estava querendo me dar uma lição, punir-me por tê-lo desafiado.
Entretanto, estava sendo sublime, e seguramente, ele não esperava que eu estivesse gostando. Esperava dar-me uma lição. Minhas pernas começam a perder as forças, meu delgado corpo era tomado por subterrâneas tremidinhas de prazer. Gozo. Aquele gozo tão magnífico como se a vida fosse acabar naquele efêmero momento. Fiquei cheia de marcas, hematomas, manchas doloridas, em partes visíveis e invisíveis do meu corpo. Fiquei com aquele gosto de tabaco na boca.
Sempre que tínhamos a impunidade da casa vazia, o meu cheiro de canela misturava-se com o seu de tabaco. Era algo muito corpóreo, gestual, simbólico. O amor que nos atava com os nós da improbabilidade estava completamente distante da linguagem, da fala, das palavras, dos sons articulados. Não havia explicação plausível. Não havia a necessidade de diálogo. Os nossos corpos falavam. Era o cheiro dele. As suas mãos, a sua forma de me abraçar, beijar todo o meu corpo, chupar, morder. A textura dos seus cabelos levemente crespos diretamente ligados a sua grossa barba eram afagados com a leveza insustentável do toque dos meus frágeis dedos. Não poucas vezes ele dormiu entre os meus braços com tão suaves carícias. Eu via nos seus olhos a sinceridade similar ao mais fiel devoto, denunciante do que ele sentia por mim. Nunca falou uma palavra de carinho. Ele exalava por todos os porros um bem-querer e um quereres irreversível e irresistível. Ficavam em eternos e efêmeros minutos contemplando aquela criatura que me inspirava, que me fazia tremer, palpitar e sentir medo, calafrios, e fogo intenso. Eu contentava-me em apenas contemplá-lo como se fosse uma relíquia sagrada digna tão somente de adoração.
O banho era um dos raros momentos nos quais ficávamos juntos, e ele apenas me observava. Sentava-se na privada, fumando um cigarro após outro, um Derby após outro. Sempre recusava os meus convites de banhar-se comigo. Parecia que não queria mácula naquele instante de depuração. Depois de estar com ele, sempre gostava de tomar banho quente. Sentia o meu rosto, cabelo, costa e seios amortecendo nos primeiros contatos com o desaguar morno, tranqüilo e relaxante. Amarrava os cabelos, passando o sabonete pelo corpo inteiro, desfazendo-me do suor. O vapor, o seu olhar, minha nudez transformavam aquele ato banal de limpar-se em algo mágico, arrebatador, fantástico, que apenas os sentimentos, as emoções, a imaginação, poderiam desprender-nos dos limites espaço-tempo, na medida exata, da distância ínfima, entre os nossos desejos encarnadas em cobiçosas, diáfanas e acanhadas trocas de olhares esquivos.
Aqueles momentos atemporais começavam a incomodar. Tornaram-se perceptíveis, apesar de toda a preocupação em fazê-los secretos. Minha mãe desconfiava. Os seus atos falhos me diziam que sua relação com ele ultrapassava as fodas casuais próprias das mulheres frustradas com o fado intolerável de anos de um contrato de estabilidade e acomodação chamado casamento. Ela sentia e queria mais. Era notável em seus olhos e gestos. Mulher de meia idade. Linda com aqueles resquícios da beleza dos anos juvenis. O tempo não a fez definhar no aparente. Inteligente, interessante, culta. Sabia se fazer presente, em se fazer ver, em se fazer notar, chamar atenção.
Com a fala articulada, voz empostada, convencia a qualquer um com a sua retórica e argumentação sólida. Isso tudo fruto da experiência, do transcorrer da vida, ninguém vive impunemente. Bem-sucedida profissionalmente, advogada de sucesso, preiteava a carreira nos tribunais como juíza. Sou cônscia que herdei sua beleza, inteligência e uma boa educação. Sua prepotência, arrogância, mesquinhez e teimosia ficaram para si – talvez eu seja um pouco teimosa. Ela apenas observava a situação. Estudando. Perscrutando. Sopesando os gestos. Planejando ações.
Rondava-me como um felino faminto, armando o ataque, com o intuito de garantir seu território. Sutil e objetiva, enfática e calculista, ela sabia o momento exato de agir. E agiu. Em um dia qualquer Abriu com relativa violência a porta do meu quarto. Estudava preocupada e tensa, revisando alguns assuntos pendentes: era fim de semestre na faculdade – fazia Jornalismo. Trabalho, prova, estudar – enfim, vida de estudante. Assustei-me, foi quando ela apareceu, passou as mãos nos meus cabelos, acariciando-os, não dei muita atenção. Em intervalo de segundos, enfiou as unhas rente ao meu couro cabeludo, agarrando em suas mãos um belo punhado de cabelos de forma profundamente violenta, e proferiu as palavras em uma fala lacônica e direta: “Olha, presta atenção, vou falar apenas uma vez. Espero ter que falar apenas uma vez. Deixa de ser vadiazinha que fica dando para homem mais velho achando que isso tem algum glamour ou sinal de maturidade. Afaste-se dele, isso é um ultimato! Afaste-se dele sua vadiazinha e vai tratar de procurar um pica da tua idade para te comer. Estamos entendidas?”. Não disse nada. Estava paralisada. Não acreditando naquela situação e no que estava sendo dito nela. “Sim? Responda, sua moleca” – ela disse, gritando. Eu respondi: “Claro, mamãe” – calma e serenamente, com o tom cravado da ironia. Simplesmente depois dessa ameaça direta, nada mais foi o mesmo. Provocou-se um estado de sítio dentro de casa, todos sempre apostos, atentos e responsáveis. Pelo menos, as coisas ficaram mais claras. Diretas. Diretivas. Decisivas.
O meu pai era um homem muito ocupado. Calmo, taciturno, ponderado. Praticamente o oposto a minha mãe. Na verdade, eles tinham poucos pontos em comum. No entanto, ele amava-a perdidamente. Fumava muito, bebia pouco. Entorpecia-se de café. Cabelo sempre bem cortado, barba aparada. Muito expressivo no seu falar pausado, hesitante e reflexivo. Sua voz era doce, quase declamava. Gostava de usar roupas de tons claros próximo ao branco. Tinha alguma mania: toda a família na mesa para a refeição – filha, pai e mãe; avisar quando sair e se ia dormir em casa; quando estava nervoso, fica insistentemente pegando na barba; fumava em qualquer oportunidade, inclusive durante as refeições; gostava de futebol. Não obstante, passava maior parte do seu tempo útil em casa, trancado no escritório, lendo, revisando textos, escrevendo em sua velha máquina de escrever. Em várias oportunidades, eu passava a tarde com ele, sempre me recomendava um ótimo livro, e ficávamos, silenciosos, ele, atencioso em seus papéis, eu, lendo, lendo, lendo.
Certa vez, em desses nossos momentos, lhe pedi um cigarro. Ele, parou imediatamente o que estava fazendo, levantou o olhar, baixou os óculos, e perguntou: “Como é?” – em um tom severo. Respondi: “Pedi um cigarro” – normal. Ele: “Já não era sem tempo, tome um, pegue quantos quiser” – colocando os óculos sobre o nariz e olhos na sua papelada. Fumamos juntos. Sua presença transmitia paz e segurança. Professor universitário, sua rotina era muito assoberbada de aulas, palestras, orientações e pesquisas. Sempre encontrava tempo para conversar comigo, saber como estava, enfim, ser meu pai. Tratava-me com carinho e respeito nunca vistos. Percebeu alguma mudança em casa. Sobretudo, na relação entre eu e ela. Sabia que algo não ia bem. Mas resolveu esperar. Ver o que acontecia, com a sua sutil sabedoria.
A situação tornava-se insustentável. As indiretas da minha mãe. Ele, mesmo precisando do emprego, estava querendo se despedir. Meu pai desconfiando de alguma coisa. Os dias se passavam, e tudo isso me angustiava, não sabia o que fazer. Dia após dia. O impasse se alongava. Então, tomei uma decisão. Procurei meu pai e lhe disse tudo. Ele ouviu atentamente. Apenas disse-me, secamente: “Fique tranqüila. Tomarei providências”.
Dois dias depois, no noticiário da manhã, percebendo a ausência dela na mesa, o meu pai tomando seu café tranquilamente, a jornalista apresenta a manchete: “Casal é encontrado morto em motel, polícia suspeita que fossem amantes. Foram mortos pelos criminosos que assaltaram o motel. A política pauta sua investigação pela hipótese de latrocínio”. Apareceram imagens do casal morto: minha mãe e ele. Terror. Fiquei horrorizada. Não acreditei. Comecei a chorar. Náusea. Ânsia de vômito. Olhei para meu pai, estava tranqüilo e sereno, fumando. Apenas disse: “É assim que resolvo problemas irresolutos. Traição. Filha-da-putagem. Sem alarde. Sem estardalhaço. Na raiz. Por uma simples razão: amor. Amor que só pode ser lavado e remido com sangue”.
Passaram-se dois anos. Meu pai mora ainda na mesma casa. Só, em seu escritório, com o trabalho e seus livros. E a impunidade.
Eu, não agüentei. Perdi a razão. Escrevi esse relato em um dos meus raros momentos de lucidez. Habito uma casa de recuperação psiquiátrica há cravados dois anos. Nunca culpei meu pai, sei que fez aquilo por amor. Definho, a cada dia, vivendo o meu ocaso. Lembrando-me dele. Os vermes da razão habitam a minha memória corroem os restos do meu cadavérico amor. Comecei a morrer lentamente depois daquela manchete. O amor está me fazendo apodrecer em vida.
(Felipov)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Eu-etílico



Uma pessoa que ainda em vida não experimentou o deleitoso estado de consciência alterado que a substância etílica, seja fermentada, seja destilada, proporciona aos seres bebentes, não é digno de dizer que vive. Sim, é isso mesmo, eu defendo conscientemente o ato de ficar ébrio.
Antes de dedicar algumas curtas linhas sobre a questão, uma ressalva faz-se necessária. Não estou escrevendo a favor da porralouquice de ficar bêbado. Leia-se: beber e dirigir, beber e brigar, beber e fazer-qualquer-tipo-de-merda. Por esta razão, faço questão de utilizar o termo “ébrio”. Estou tratando do lado poético da coisa.
Acredito que todos precisam, ao menos, uma vez na vida, experimentar esta sensação, fazendo seus julgamentos necessários, no caso: torna-se um abstêmio, ou adentrar a imensa fileira dos ébrios. Enfim, é uma questão de escolha. Ou não, gritariam os Alcoólatras Anônimos. Mas isto aqui não é auto-ajuda, então desconsideremos tal objeção. Não preciso discorrer aqui sobre as vantagens e desvantagens do uso de substâncias etílicas. Cada um sabe o que faz. Ou deveria.
Quero apenas ressaltar que seu consumo, por sua vez, o estado de consciência alterado que provoca, despertando da psique das pessoas o seu eu-etílico inerente, é uma experiência existencial que todos precisam viver. Acredito que todos necessitam dar vazão, mesmo que em uma única oportunidade, para que seu eu-etílico venha à tona, tenha vida, transformando as ações consciente do sujeito sóbrio, correto, responsável, bem alinhado no seu avesso inexorável.
Aquela inconfundível sensação de ver o mundo, as coisas, as pessoas um pouco mais lento, em ritmo retardado, parecido com câmera lenta, o embaralhar da fala que se desarticula, os sons que ficam baixos, amenos, quase inaudíveis, necessitando, em uma conversa qualquer, do movimento de aproximar as orelhas da fonte de ruído ou som, perguntando “Hããm, o que você disse?”, sem, claro está, de esquecer, o desafiante ato de levantar-se para ir ao mictório, os homens, e, ao toillete, as mulheres, no qual cada passo é dado em um envolvente movimento de cercar galinha, leve, malevolente, desajeitado, perambulante.
Os comportamentos clássicos da efusividade extrema, da tristeza mórbida, o debate filosófico de mesa de bar, os excessos de raiva, as demasiadas demonstrações de carinho. A mesa de bar é o espaço mais confortável para se recostar na sonolência, salvo aqueles que são mais indiferentes as pressões da moral social e reprovação alheia, deitando desaforadamente em qualquer sarjeta mais limpa e atraente ao sono reparador.
Contudo, há dois algozes de tal deleite, faces da mesma moeda: a ressaca física e a ressaca moral. A abjeta náusea etílica é dimensão física do intrínseco sentimento de culpa advindo da ação do eu-etílico. Admitamos, às vezes, eu disse, às vezes, o eu-etílico ultrapassa as barreiras da tacanha moral estabelecida, transformando-se em alvo do escárnio dos amigos e transeuntes em geral. O dia seguinte é sempre o mais difícil. São as ânsias de vômito intercaladas pelos flashs das lembranças do que aconteceu.
Claro que ninguém recorda de tudo, só depois, os amigos filhos da puta, que vem com a história totalmente editada por hipérboles próprias da arte de sacanear. A encarnação é tão forte, a vergonha é tão intensa, a ressaca fode tanto com a cabeça quanto com o estômago, que todos, eu digo, todos, já juraram, por tudo que é mais sagrado, pelo seu amor próprio, em nome da honra, pelo bem de sua saúde, já fizeram promessas, não fico surpreso se tiver um santo especialista nestas causas, enfim, se resguardaram de todas as formas possíveis e infindáveis da imaginação humana, proferindo: eu nunca mais vou beber. Ledo engano. Todo mundo na vida já disse isso.
Todo mundo tem uma história. Um amor perdido. Uma grande conquista. O nascimento de um filho. Carnaval. Páscoa. Natal. O feriado de alguma nossa senhora de causa impossível. Corpus Christi. Dia das crianças. Não importa o motivo, nem a ocasião. Tudo é motivo. Culturas que proíbem a ingestão de substâncias etílicas, devem ser sociedades muito tristes. Eu tenho a impressão que pessoas que bebem são muito mais felizes. No meu caso, eu sou um triste e infeliz, que nas horas vagas, o meu eu-etílico vagueia pelas ruas da boemia, disfarçando resignação com alegria. Até o último copo. Então, eu encontro com o seu eu-etílico por aí, caro leitor. Um brinde. Tim-tim.
(Felipov)

sábado, 7 de janeiro de 2012

Os ventos do Marajó



As deslumbrantes paragens do Marajó são um dos motivos pelos quais tenho orgulho da terra onde nasci. Beleza natural singular, com algumas partes ainda rústicas pela pouco ou nenhum contato humano, estreitas estradas viciais que dão caminho a profusos e longínquas localidades esquecidas entre as periódicas nuvens de poeira dos carros particulares, caminhões e cavalos de montaria que por ali tem passagem, os campos alagados no inverno, no qual os búfalos habitam em abundância, ao lado das diversas aves, as miríades de insetos e cavalos selvagens que compõem essa paisagem, que ficam secos e quase sem formosura estética aos olhos do visitante desavisado no verão, o sol forte e calor intenso que enegrece a pele de seus habitantes, que me deixou avermelhado, as praias de areia alva e água salobra, com os telúricos e diáfanos ventos marajoaras.

Os inconfundíveis ventos do Marajó. Passei a virada do ano em nestas terras na companhia de dois amigos, no curto recesso que tive do trabalho por ocasião das festividades de fim de ano – ficamos no sítio de um amigo destes meus amigos. Havia visitado aquele formoso chão em outra oportunidade e com outros amigos, tal experiência deixou-me insofismáveis marcas em minhas lembranças e foi o que me determinou a voltar ao arquipélago – esta viagem me legou profunda saudade. Aquele tempo de turbulentas relações, de crescimento pessoal, descoberta das capacidades individuais, o aceleramento do mal-estar social, em uma palavra: a revelação da autodeterminação individual própria da vida independente. Nesta ocasião, junto aquelas prestimosas companhias, que, por ora, seguiram seus difusos caminhos, encontrando-se afastados de mim em presença, no entanto, com toda a certeza, junto a mim, em pensamento e sentimento, lavraram sua marca na minha história tão parca, embora bem-aventurada existência. Os ventos do Marajó haviam indelevelmente me marcado.

Primeiros sufocos no porto, característicos daqueles parauaras que deixam tudo para cima da hora – salvo engano, suponho que este comportamento seja o modo dos brasileiros serem no mundo. Ou não. Quem sabe. Depois de alguns ensinamentos inerentes a truculência da educação básica dos trabalhadores portuários sobre as cores da passagem e a minha percepção da péssima educação primária que tive, fui convencido com uma insuperável demonstração didática me fez ver a cor azul da minha passagem e que ela tinha embarque marcado para as sete da manhã, o relógio marcava seis horas, esperamos uma hora em pé encerrando fileira com outras dezenas de pessoas, sob o calor e o tédio da espera naquela situação própria dos lugares subdesenvolvidos: pessoas aglomeradas, bagagens amontoadas, tomando café preto com pão amanteigado, vendedores oferecendo água, cerveja e café. Conseguimos, enfim, embarcar, obviamente em um navio lotado.

Os três, sentados na proa, ela tocando debilmente sua escaleta, ele, manejando habilidosamente sua viola, eu, que sou um pária musical, vinha batendo palma, quando era conveniente ao ritmo das músicas tocadas: os sambas e choros dos tempos pretéritos. Canções que sempre nos disseram muito, e nos davam consciência do nosso deslocamento existencial. A viagem em si foi rápida em suas quatro horas de duração. Atracamos no Camará, porto de chegada, com o igual sufoco do embarque, aquelas dezenas de pessoas se empurrando para subir na íngreme escada de acesso ao piso superior do trapiche, quase que apostando infantilmente quem chegaria primeiro, como se houvesse algum prêmio por tal infortúnio: o simples espetáculo da irracionalidade humana – dentre os milhares que temos mundo a fora. Ficamos contemplando aquilo, atônitos, nos sentimos alheios a humanidade que se debatia sem qualquer razão aparente, tal qual bois a caminho da imolação. Veio-me apenas àquela triste impressão de se sentir estrangeiro em sua própria terra, em meio a seus conterrâneos. Até que avistamos o primo do amigo em que ficaríamos abrigados em terras marajoaras.

Os ventos telúricos do Marajó embaraçaram os meus cabelos. Conversas amistosas sobre as vantagens e o bem-estar que provocavam em nossos anfitriões, o amigo do meu amigo e seu tio, ao visitar o Marajó, embalaram a viagem até a fazendinha. Lá chegando, conhecemos os demais familiares: sua mãe e avó. Pessoas simples e receptivas, nos sentimos em casa. A avó, pessoa ativa e falante, diligente e atenciosa, desfrutava das qualidades inerentes da terceira idade: viver sem pretensões e com franca sinceridade. De forma similar as crianças, suspeito que a velhice seja uma infância consciente. A mãe é mais diretiva e pragmática, dando o tom da dinâmica das relações na casa, na verdade, é ela quem administra tudo, faz com que as coisas aconteçam, demonstrando que as mulheres não estão mais restritas as preocupações unicamente domésticas que lhes eram reservadas, ou melhor, confinadas e amordaçadas na cozinha, no tempo de sua mãe. Os tempos são outros – testemunhando algum avanço da humanidade.  

O sítio ficava em uma localidade próxima de Cachoeira do Arari. Um tanto afastada, os dias passavam-se monótonos, vagarosos, lentos, ao ritmo da natureza. Era disso que precisávamos: viver o tempo em sua sucessão natural, sentindo o cheiro dos campos, que, por vezes, eram marcados pelos odores do chiqueiro vizinho e pelos restos de merda pedregosa dos cavalos. Tudo isso me causou profunda impressão. Tudo isso era muito subversivo. Alguém, como eu, que vinha da cidade, com o tempo demarcado pelo trabalho, a família, a boêmia, com raro tempo para dormir e teimosamente encontrado para ler, aquilo parecia um paraíso terreal. Fiquei estupefato em ver que o time is money não contaminou aquelas vidas, que parecem levar suas existências similar à tempos pré-capitalistas, mesmo que inseridos na sociedade do capital com suas televisões ligadas na novela das oito, os radinhos de pilha ouvindo pontualmente “A voz do Brasil”.

Contudo, pude vislumbrar o real valor do ócio e da monotonia. Claro que meus amigos contribuíram bastante nesta percepção. A solidão tem seu tempo e espaço de manifestação. A rigor, a companhia faz toda a diferença. Como foi nesse caso. Dormimos o dia inteiro, desfrutando dos ventos do Marajó, ora refrescantes, ora abrasadores, bem de acordo com o verão destas terras, ou mais precisamente, da transição entre a seca e as chuvas. Estávamos no período de transição, e, por isso, os indomáveis ventos formadores das chuvas. Conversamos fartamente, em diálogo franco, daqueles em que todos se modificam de alguma forma, ninguém fica indiferente, reforçando os laços de amizade. Ouvimos muitas músicas, muitos sambas, muitos choros, o melhor da música brasileira, evocando o melhor da nossa cultura em versos e melodias, eles tocando em meio dos campos abertos, em cima de esteiras de palha, à luz de lamparina, o frescor da noite, aos goles de cachaça de Jambu.

Enfim, estas foram as minhas impressões daqueles dias passados, remota e recentemente, ainda encerrados em minha memória, acalentadas por aqueles indomáveis ventos do Marajó, fincou-me no peito a impávida certeza de ser um segundo lar.

(Felipov)