quinta-feira, 29 de abril de 2010

O que tens?

Certa vez me perguntaram
“O que tens?”
Ao me verem taciturno e lendo
De pronto, assustado, levantei
a vista do livro, surpreendi-me
com a questão, um tanto complexa
Na hora, marquei a página
Arrumei-me na cadeira
E pensei...
Afaguei a barba
Peguei no bigode
E disse, em tom hesitante
O que tenho é:
uma unha quebrada
gosto por capuccino
renite
uns versinhos escritos
no papel de pão
um conto inacabado
uma estante de livros usados
chatice
piadas pouco usuais
um coração vasto
altruísmo
e um pouco de timidez
Tanta, que quase não respondo

quarta-feira, 28 de abril de 2010

La polonaise

Piano, pianista
Ele senta, o piano espera
O piano sente as mãos
O pianista sente a música
Fico hipnotizado
Vendo
O orquestramento
A melodia
E a música a tocar-me
Uma sinestesia
Uma melancolia
Uma inveja
De não saber,
de não poder,
tocar a polonesa
de Chopin

(Felipov)

terça-feira, 27 de abril de 2010

A queda, vasta queda

Sinto
Sinto muito
vasto, sentimento
aplaca meu coração
Coração vasto
Vasto que não cabe no peito
E é muito menor, muito
menor que o mundo
mundo, vasto mundo
Muito mais vasto que meu coração –
Drummond que me desculpe o remendo.

Sôfrego, renitente,
palpita lento, insistente
Insiste em acreditar
que há saída para os homens
Problemas humanos, soluções humanas
nada além disso
Crê que os homens
não se colocam problemas
que eles mesmos não possam resolver –
como um velho barbudo de outrora

Acredita que há saída para a queda
A queda da despedida,
ruptura provocada por aquele adeus
sem volta e esperança
Triste, ele sente
Vasto, ele fica
Sentindo o mundo
lento em suas impressões –
com um eu-lírico da tabacaria

Cumpre o seu dever
Compromissos, afazeres
Com aparente competência
Ele faz o bastante, o que pode
De uma bondade desmedida
Por vezes mal lida
O lêem mal
Não os culpo
É difícil mesmo
Taciturno e implícito
Como tudo o que sente em demasia
Muito menos ela
que se foi, deixando-o
Contudo, a queda foi necessária
Pois o deixou muito mais vasto
Vasto na sua... contemplação do mundo –
como crê esse infante demasiado senil
(Felipov)

domingo, 25 de abril de 2010

Summer 78

Nasci na época errada
Não sei por que tenho essa idéia
Hoje, pensando sobre o passado
o vejo tão presente e condizente
As manhãs de domingo
As tardes chuvosas de sábado
A segunda cansativa de entrada
E a sexta animada de saída

No entanto, em minha lembrança,
vem o verão de 1978
Tempo de alegrias e certezas
Utopias e divagações
Foi que a encontrei
Quando estive no Leste Europeu
Russa, mediana, olhos azuis, cabelos franzidos ao natural
Camponesa, uma mujica, que lia Tolstói e Proust
Sotaque francês, isso: era francófona
E francófila – uma ofensa a qualquer russo médio
Uma ocidentalista
Aspirante ao Bolshoi, sem altura, desenvoltura e rendas

Por isso, me notou, me encontrou
Na livraria na qual trabalhava perto do rio Neva
Era vendedora e guarda-livros
Pedi qualquer livro do Dostoiévski, em francês
Ela se animou e de pronto me atendeu
Trouxe os Karamazovi – como ela sabia que era meu favorito
Troquei duas palavras sobre a obra
Apreciava o Ivan
E nessas parcas palavras trocadas
Percebi o quanto era encantadora
De uma inteligência aguda e irritante, quase subversiva
A ternura com que arrumava, organizava e limpava os livros
Quase peço para me juntar a eles

Nos olhares trocados e no contato formal
Houve um encontro
Levantei-me e fui ver uma estante
Logo depois, pedi sua ajuda, e ela veio
Voltei-me para ela, e nos vimos de frente
Fronte-a-Fronte, envergonhados
Por ímpeto, sentimentos e emoções
Abraços, beijos e afagos
No corredor, meio escuro e desabitado
As memórias daquela tarde em São Pertesburgo
Ainda vivem em mim
Habitam-me, se escondem
O passado-presente
O verão de 1978
Aquele verão de 78
Da svidania, mujica
(Felipov)

Não-linear

Ensimesmado, sou complicado
Quanto penso, já foi
Quanto sinto, perdi
Ver é algo complexo
Não é apenas olhar
Nos perscrutamentos dos sentidos
Na metafísica das emoções
Eu me perdi
Perdi-me na não-linearidade do ser
Mesmo sendo tudo tão simples
Ao fio da lógica matemática
Eu, insisto, em ser tão alinear
Não sei outro modo de não sê-lo

(Felipov)

A mão do sono

Tenho dormido tarde
Mas não é insônia
É espera, repouso
De quê, não sei ainda
Contudo, espero
Madrugadas de espera, leitura e café

Só-no
Sono
O prazer onírico
Do qual furto meu corpo
E alimento meu espírito (?)
É, enquanto isso,
aguardo a mão do sono
Colocar-me para dormir
No só sono...

(Felipov)

Vida-Àvida

A vida é àvida
Sim, meu caro, é ávida e trabalhosa
Inexorável, profusa
Deletéria, incurável
Difícil, e ao mesmo tempo,
Insofismavelmente, bela e sublime
Necessária na sua medida de amor e caos

(Felipov)

Cansaço

Hoje, segunda-feira
Sono e insônia
Sede e fome
Desassossego e contentamento
Limpo os olhos embaçados
Arrumo o cabelo
Tomo um café
E sigo, por inércia, na semana

(Felipov)